Mesmo um país tão escolado em crises e atropelos econômicos como o Brasil não convive facilmente com a perspectiva de esfriamento da atividade produtiva que se avizinha. Tudo leva a crer que os próximos anos serão marcados por taxas menores de produção, menor oferta de empregos, estagnação comercial e acirramento de conflitos. Mas as crises econômicas, uma vez devidamente respeitado o sofrimento alheio, podem suscitar oportunidades para se buscar alternativas que tornem a economia menos vulnerável no futuro. Com um pouco de sangue frio, podemos observar em retrospecto que a atual crise econômica, que começou por castigar bancos e mercados nos países mais industrializados desde meados deste ano, tem uma explicação simples, mas requererá soluções complexas. Nada poderia ser mais previsível do que o colapso dos processos de acumulação que se consolidaram desde o final da década passada, em grande medida baseados na especulação imobiliária, no oportunismo financeiro e em artificialidades cambiais. Há muito que se previa o furo da bolha e, pelo menos entre os mais lúcidos comentaristas, a questão era apenas saber quando e onde o castelo de cartas iria começar a ruir.
Para quem se lembra daquele jogo “banco imobiliário”, a analogia é perfeita: o mercado de imóveis movia-se sempre em círculos, ao sabor dos dados, comprando imóveis de plástico e apostando contra a fraqueza dos demais. Todos tentavam obter ganhos máximos no menor intervalo de tempo possível (no Reino Unido, o mercado de imóveis foi uma grande festa com uma subida média de preços de 241% entre 1994 e 2008). Ao mesmo tempo, muitas pessoas foram levadas a colocar todo o dinheiro que podiam em mercados da carochinha, como Islândia, Jersey e Ilha de Man. Enquanto o desvario do lucro fácil tomou conta das transações imobiliárias e do mercado financeiro (ao ponto de a Escócia ter chegado a uma dependência elevadíssima da atividade bancária para a formação do seu PIB), deslocou-se a produção de bens e mercadorias para os rumos do nascente, China e Índia em particular. A farra se baseava não somente na apropriação do suor asiático, mas na manutenção de preço baixos de matérias primas e recursos naturais (inclusive petróleo). O equilíbrio do sistema era tão tênue e frágil, que deu no que deu. E tudo isso parece ser apenas o começo de um longo e penoso processo de reacomodação. Como bem descrito pelos economistas do Século XIX, há uma tendência inescapável no capitalismo de alternar fases de bonança com períodos de desvalorização do capital, necessária para que se restabeleçam as bases de acumulação (temporariamente?) perdidas.
Se o diagnóstico da crise depende apenas de um pouco de bom senso e de conhecimentos rudimentares de história e economia política, a questão crucial é localizar rapidamente a porta de saída. Contudo, como se diz no vernáculo dos botequins, aqui é que mora o perigo. Existe o grave risco de se considerar a crise econômica apenas como uma questão de erro de dosagem, ou seja, um superaquecimento circunstancial do mercado imobiliário e dos ganhos na bolsa de ações. Mas é preciso que se perceba a dimensão histórica, e quiçá pedagógica da crise, uma vez que as chuvas e trovoadas que se aproximam refletem distorções e desarranjos muito mais profundos. Herdamos do Século XX, em que pese avanços impressionantes na comunicação e transmissão de idéias, uma globalização dos mercados que tem servido para democratizar bugigangas e inutilidades várias. Como descrito décadas atrás por J. K. Galbraith (no seu livro “The Affluent Society”), o atual sistema de produção induz a uma demanda por mercadorias que é essencialmente perdulária e irresponsável. Ao ponto de a grande função do emprego hoje ser a manutenção do crescimento econômico por meio do fluxo de consumo, mesmo que sejam artigos de necessidade e valor duvidosos. Ou seja, não mais a produção, mas o consumo, tornou-se a principal força motriz da economia globalizada. Daí a necessidade de salvaguarda do crédito e de redução dos juros, para que se consuma, compulsivamente, cegamente, patologicamente. Comprar e jogar fora, o mais rápido e ostensivamente possível. O condicionamento é tal que, ao se restringirem as compras, muitos passam imediatamente a um estado depressivo (não é à toa que as igrejas britânicas, ao acolher os filhos guachos do consumismo, começaram a registrar uma assistência crescente nas últimas semanas).
Mas não adianta agora chorar o leite, as ações e os cartões de crédito derramados. Não basta que se critique a gênese da crise se não forem identificados caminhos novos, se não se aprender com os erros de uma cegueira coletiva (qualquer semelhança com o livro do Saramago, não é mera coincidência). Se não se repensar a lógica dos mercados, não adianta nada querer fazer apenas ajustes na velocidade: iremos, sempre e novamente, para o precipício. Contudo, é sintomático que muitos ainda busquem insistir no erro, desnudar um santo pra vestir outro. E o primeiro ataque é sempre sobre o meio ambiente! Clamam os falsos profetas: que se abram as portas da legislação ambiental, porque é preciso voltar a produzir e consumir, não importando em que termos se produzia e consumia antes da crise. Podemos ver que no Reino Unido, por exemplo, os empresários já começaram a fazer uso da comoção geral para reivindicar vantagens fiscais e condescendência regulatória. Há uma renovada expectativa que indústrias pesadas ou loteamentos em áreas de preservação sejam agora finalmente aprovados. Da mesma forma, durante o encontro sobre mudanças climáticas na Polônia, em dezembro de 2008, o governo alemão, em nome da maior economia européia, buscou evitar metas de redução de carbono que venham a afetar sua indústrias e a geração de energia a partir de carvão.
Havemos de manter os olhos e ouvidos muito atentos, especialmente quando começar aquela velha ladainha: “produção versus meio ambiente”, “emprego versus impostos”, “fiscalização ambiental versus apoio eleitoral”… aquele cantochão manjado: “aprovem meu projeto de investimento (com dinheiro público, naturalmente) que ninguém vai se importar que se destrua uma pontinha de mato ou se polua um trechinho de rio”. Com esse argumento de que é bom degradar para que a economia cresça, que o Brasil é grande e não vai fazer falta, que mata em pé e terra de índio são desperdícios, levaram-nos o pau-brasil, as araucárias, a caatinga, o cerrado e agora vai nas costas do ladrão o Pantanal e já boa parte da Amazônia. Ora, cara-pálida, se nos anos de vacas gordas, não se pensou em socializar os ganhos fáceis, por que agora deveria se aceitar a destruição de um patrimônio natural que pertence a todos? Por que motivo, agora que a maré refluiu, deveríamos concordar com o seqüestro dos fragmentos de meio ambiente que ainda sobram?
Para desconforto de muitos ambientalistas, cabe enfatizar que a questão central aqui não é ética ou sentimental, mas profundamente política. Quando se tenta convencer que vale a pena trocar água, solo e ecossistemas por crescimento econômico (que não é decidido e tampouco beneficia a maior parte da população), estamos lidando com demonstrações concretas de desigualdades de poder. Vejamos o São Francisco: cada vez mais degradado por culpa da lavoura exportadora, das cidades sem saneamento e das hidroelétricas sedentas, mas aqueles que vivem perto do rio e sofrem mais de perto sua agonia não têm muito que celebrar em termos de melhoria de vida. O problema ambiental, com todas suas facetas materiais e simbólicas, nunca deixa de ser uma combinação de injustiça social, covardia administrativa e inversão de prioridades econômicas. Essa previsível chantagem sobre o meio ambiente é tão antiga quanto as crises, com a grande diferença que a natureza não se recupera quando a crise passa.
Se em um momento como agora existe a ameaça de avançarem sobre o meio ambiente em troca de promessas econômicas vagas, há também o risco de vermos, como já estamos, economistas e empresários que tentam nos convencer que o momento pode servir para que se promovam as ditas mercadorias ambientais, como créditos de carbono e pagamento por serviços ecológicos. Conforme teorizado pelo geógrafo escocês N. Smith, a transformação da conservação ambiental em mecanismo de acumulação representa a mais nova fronteira do capitalismo mundial. Mas os defensores dessa chamada “modernização ecológica” desprezam o fato de que conservação ambiental e adoção de tecnologias responsáveis deveriam ser uma exigência inegociável da atividade produtiva e não uma prática que, para ser adotada, requer uma compensação monetária. Insiste-se, assim, na mesma racionalidade da acumulação fácil e “naturalização” do valor do dinheiro, a qual foi a causa desta e de outras crises, para mitigar os efeitos negativos que a própria acumulação causou. Além disso, não faz sentido que se paguem agricultores para manterem água, solo e biodiversidade se não forem eliminados as exigências tecnológicas e alfandegárias que distorcem todo o mercado agrícola nos quatro cantos do mundo.
Enfim, não cabe lamentar as conseqüências nefandas da crise se nada for feito para eliminar o risco de que a fatura seja paga por aqueles que menos se aproveitaram da festa. A natureza também não pode se tornar refém de remendos a um modelo econômico comprovadamente inviável, baseado na demência consumista e na degradação ambiental progressiva. Se não nos perguntarmos como a crise econômica começou, corre-se sempre o risco de voltarmos, geração após geração, ao muro das lamentações, apenas com menos meio ambiente para ser rifado no futuro. O Brasil, com os recursos naturais que tem, pode perder muito se aceitar que se curvem, sociedade e governo, às exigências de uma atividade mercadológica disfuncional e injusta. Sem nos atentarmos para a relação direta entre crise econômica, exclusão social e exploração ecológica, nada de positivo poderá emergir da atual experiência. Claro que não se esperar que esse debate venha a ocorrer espontaneamente. É preciso levantar a voz e dizer que desvario econômico e pilhagem ambiental não podem mais seguir de mãos dadas.
Autor: Antônio A. R. Ioris – é professor da Universidade de Aberdeen.