A qualidade de vida em uma cidade pode ser quantificada por vários índices e taxas. Mas, para o pedagogo italiano Francesco Tonucci, o parâmetro pode ser outro: as crianças.
Se as cidades são amigáveis a elas, fornecendo espaços para que sejam escutadas e para que brinquem, é muito provável que sejam bons lugares para todo tipo de pessoa viver, segundo o pedagogo, criador da Rede Mundial de Cidade das Crianças, que reune 200 cidades no mundo que buscam debater e adotar iniciativas para integrar as crianças à vida urbana.
“Acho que as cidades nunca serão das crianças, mas a ‘cidade das crianças’ é uma perspectiva, uma utopia. É um caminho a fazer”, explicou Tonucci em entrevista à BBC News Brasil por vídeo, realizada enquanto esteve em Jundiaí (SP) para o 1º Encontro Brasileiro de Cidades das Crianças e o Fórum Internacional das Infâncias, realizados de 18 a 24 de março.
“As cidades modernas foram feitas para os homens adultos e trabalhadores. E claro que uma sociedade pensada para eles é muito incômoda para aqueles que não são homens, adultos e trabalhadores. Estamos falando de crianças, idosos, pobres, pessoas com deficiência e imigrantes. A cidade foi feita para poucos, e esses poucos defendem seus privilégios.”
Para participar da Rede Mundial de Cidade das Crianças, não é necessário um investimento financeiro direto, mas há alguns requisitos — como a criação de um comitê de crianças que proponha projetos para a cidade e o apontamento de uma pessoa responsável por coordenar diferentes áreas da Prefeitura para assuntos relativos à infância.
Jundiaí passou a integrar a rede em 2018 e, em março, foi anunciada como a sede da Rede Brasileira das Cidades das Crianças. Há outras dez cidades do país que manifestaram a intenção de participar da rede, mas, por enquanto, a cidade paulista é única brasileira a integrar o grupo internacional.
Segundo a prefeitura de Jundiaí, comandada por Luiz Fernando Machado (PSDB), o comitê de crianças — composto anualmente por sorteio — já teve reivindicações atendidas na cidade, como a instalação de brinquedos para crianças com deficiência e a construção do parque Mundo das Crianças. O local foi um dos principais espaços para aulas ao ar livre da rede municipal durante a pandemia de covid-19.
O fundador da rede é também cartunista, apresentando-se com o nome artístico Frato. Suas ilustrações também tratam da educação.
Na entrevista, Tonucci defendeu que as crianças andem sozinhas na rua a partir dos 6 anos de idade e que o uso do celular por elas seja postergado o máximo possível. Confira abaixo os principais trechos.
BBC News Brasil – Das cidades que você já conheceu no mundo, alguma se aproximou mais de uma cidade ideal para crianças?
Francesco Tonucci – Acho que as cidades nunca serão das crianças, mas a “cidade das crianças” é uma perspectiva, uma utopia. É um caminho a fazer. Mas claro que há cidades que fizeram mais e cidades que fizeram menos.
O projeto [Rede Mundial de Cidades das Crianças] começou em uma cidade pequena, a minha cidade natal na Itália, que se chama Fano. Há um conselho de crianças que trabalha lá há 30 anos.
E tem cidades ainda maiores que fizeram projetos muito valiosos. Buenos Aires tem vários conselhos de crianças e criou iniciativas que gosto muito, como a noite das crianças. As crianças pediram para vivenciar a noite do seu ponto de vista, e os adultos escutaram. A cada ano, existe uma noite das crianças: até a meia-noite, elas têm experiências diferentes em museus, fazem outras atividades e terminam com um encontro das crianças em um estádio de futebol.
E há cidades que se comprometeram muito com a mobilidade urbana. Pontevedra, uma cidade espanhola na Galícia, fez mudanças impressionantes, porque voltou a ser uma cidade de pessoas em vez de uma cidade de carros — como são as cidades modernas. É muito fácil se movimentar caminhando lá, então, há muita gente na rua. As crianças vão para a escola sem adultos.
BBC News Brasil – Você costuma dizer que as cidades são feitas para os homens adultos. Pode explicar?
Tonucci – A cidade se equivocou. Ela escolheu como parâmetro o cidadão homem, adulto e trabalhador. A cidade moderna foi feita para este cidadão produtivo.
Claro que uma sociedade pensada para eles é muito incômoda para aqueles que não são homens, adultos e trabalhadores. Estamos falando de crianças, idosos, pobres, pessoas com deficiência e imigrantes. A cidade foi feita para poucos, e esses poucos defendem seus privilégios.
A demonstração disso é o poder que tem o carro na cidade moderna. O carro é o verdadeiro cidadão privilegiado. Os carros têm direitos que nós, cidadãos, não temos: eles podem poluir, ocupar o espaço público, fazer barulhos, coisas que somos punidos se fizermos.
No ponto mais dramático, os carros podem machucar e até matar pessoas, o que não é permitido para ninguém.
Sempre digo que não é aceitável que os acidades com carros e motos na Itália sejam a primeira causa de morte dos 15 aos 26 anos. Não é possível aceitar que nossos filhos e netos morram desta maneira.
Em Pontevedra, as mudanças começaram afastando os carros e privilegiando os pedestres.
BBC News Brasil – Você disse que, nessa cidade espanhola, as crianças vão à escola à pé. Isso é algo a ser buscado pelas famílias e cidades?
Tonucci – Sim. As crianças saírem de casa sem adultos é um ato de amor, não de abandono. O maior presente que podemos dar aos nossos filhos é dizer: amanhã você pode ir sozinho à escola.
Hoje em dia, as crianças estão sempre sob o controle direto dos adultos, e desconhecem as normas. Elas chegam à adolescência sem a consciência e o costume de movimentar-se na vida. Isso é gravíssimo e em parte explica os traumas na adolescência. Por isso, no nosso projeto propomos que as crianças possam sair de casa sozinhas.
BBC News Brasil – A partir de qual idade?
Tonucci – Indicamos 6 anos porque somos prudentes [risos]. Uma criança de 6 anos se move tranquilamente.
BBC News Brasil – Você recomenda isso em qualquer cidade, mesmo nas grandes?
Tonucci – Em qualquer cidade. Já experimentamos isso em Buenos Aires, Roma, Rosário, Madri, e não acontece nada. As crianças sabem se cuidar.
BBC News Brasil – Acredito que, no Brasil, muitas famílias temeriam fazer isso não por conta das crianças, mas pelo que os outros poderiam fazer com elas. Temos sérias questões de segurança pública…
Tonucci – Não tenho dados sobre o Brasil, mas, geralmente, os perigos para as crianças estão mais em casa do que nas ruas. A violência contra as crianças ocorre em casa, assim como os acidentes domésticos.
Claro que podem ocorrer problemas na rua. Mas, se as crianças estão na rua, se estão brincando, vivendo nelas, a rua fica muito mais segura. As crianças provocam o cuidado dos adultos, obrigam os vizinhos, comerciantes a tomarem conta. Um ambiente que tem cuidado é seguro, porque se torna incômodo para os deliquentes.
[Nota da redação: no último dia 28, a BBC News Brasil publicou uma matéria mostrando que, no país, 84% das denúncias de violência contra a criança recebidas pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos no primeiro semestre de 2022 tiveram como principal suspeito parentes próximos.]
BBC News Brasil – No Brasil, em muitas partes do país e em várias classes sociais, parece haver uma preferência das famílias pelo fechamento em condomínios. Esses espaços são confortáveis e desejáveis para as crianças?
Tonucci – Deveria ser o contrário. As crianças são uma oportunidade para a abertura, não para o fechamento.
Creio que esses lugares [condomínios fechados] são lugares estranhos, não são cidades. São a negação da cidade. Eles não têm uma praça, têm controles, guardas. Não se aprende a viver assim.
Precisamos que as crianças lidem com os perigos, com os riscos, com os obstáculos.
Claro que não queremos que as crianças se machuquem. Eu não quero que a minha netinha se machuque. Mas é muito importante que seja possível que ela se defenda do perigo, e não que eu a defenda sozinho.
BBC News Brasil – Uma cidade melhor para as crianças é melhor também para os idosos?
Tonucci – Claro que sim. Assumir as crianças como ponto de referência significa não esquecer de ninguém, nem mesmo dos animais e das plantas.
BBC News Brasil – Você tem alguma opinião sobre a limitação ou não do uso de celulares por crianças?
Tonucci – Em um domingo, visitamos uma rua de Jundiaí que estava fechada para carros [Nota da redação: a cidade tem um programa chamado Ruas de Brincar que estimula o fechamento de ruas em domingos e feriados, após abaixo-assinado de moradores].
A rua não tinha jogos, brinquedos, mas as crianças estavam encantadas em estar no meio dela. Brincar, para as crianças, não significa ter balanços e tobogãs. Significa liberdade.
Havia também mães um pouco distantes, conversando entre elas, tendo uma vida social. Perguntei a uma senhora o que estava achando da experiência, e ela disse: “Estupenda. Antes, as crianças estariam separadas dentro de casa, cada uma com seu celular. Nós também.”
O celular isola as pessoas. E, nas mãos de uma criança, é perigoso. Isso não é um moralismo. Começam a aparecer estudos mostrando que a inteligência das novas gerações está sendo afetada negativamente, e uma das razões são esses aparelhos. Eles facilitam muito a vida, não há obstáculos.
Temos problemas com crianças que aprendem a ter uma vida social online, que parece mais cômoda que a relação pessoal e física.
Não acho que uma criança deva ter um celular antes dos 12, 13, 14 anos… Deveria ser o mais tarde possível e depois de anos de forte contato presencial com amigos.
BBC News Brasil – Você acredita que as crianças terão um papel importante na resposta às mudanças climáticas?
Tonucci – Não podemos pensar que as crianças resolvam os problemas que nós adultos criamos.
Nós adultos que precisamos assumir a responsabilidade e encontrar soluções para assuntos como a paz, a ecologia e o lixo. Ao ouvir as crianças, provavelmente podemos aprender muito sobre essas questões, mas esse é um trabalho político. Ou seja, a política tem que ouvir as crianças porque o que falta a elas falta a todos.
A política deve estar intessada em escutar.