Teto de gasto de Haddad torna corte de verba opcional e afrouxa punição para metas Temor de economistas é que governantes voltem a descumprir meta de resultado primário. De acordo com Ministério da Fazenda, intenção é "descriminalizar política fiscal" e evitar o sacrifício de políticas públicas Esplanada dos Ministérios, em Brasília: por nova proposta, contingenciamento de verbas anual não será mais obrigatório Esplanada dos Ministérios, em Brasília: por nova proposta, contingenciamento de verbas anual não será mais obrigatório Foto: Ueslei Marcelino - 21.abr.2020/Reuters Juliana Eliasda CNN em São Paulo 25/04/2023 às 04:00 Compartilhe: Facebook Twitter Linkedin WhatsApp flipboard Ouvir notícia A proposta de novo marco fiscal apresentada pelo governo traz de volta para a legislação de referência as metas de resultado primário a serem entregues anualmente pelo governo. O resultado primário é a diferença entre o que governo gasta e o que arrecada, sem considerar os gastos com juros. As metas servem para obrigar o governo a economizar parte da receita levantada (superávit), com gastos menores, ou impor um limite para o tanto que poderá gastar além do que arrecadar (déficit). Na análise de economistas consultados pela CNN, porém, as novas regras para as metas fiscais estão mais frouxas do que as atuais e preveem não só poucas punições, como também mais brandas. Isso abriria um amplo risco de que os governantes busquem formas de “maquiar” ou, simplesmente, de não cumprir essa meta – retomando um passado recente em que isso acontecia com frequência. Leia mais Haddad minimiza críticas sobre falta de punição por descumprimento de metas do marco fiscal Haddad minimiza críticas sobre falta de punição por descumprimento de metas do marco fiscal Gasto público não poderá crescer com receita extraordinária, como royalties e leilões Gasto público não poderá crescer com receita extraordinária, como royalties e leilões Marco Fiscal depende de arrecadação e pode forçar carga tributária, dizem especialistas Marco Fiscal depende de arrecadação e pode forçar carga tributária, dizem especialistas Entre as principais alterações, está o fim da obrigatoriedade do bloqueio de verbas do orçamento, os chamados contingenciamentos, caso a meta corra o risco de não ser cumprida ao longo do ano. As punições, por sua vez, que originalmente, pela Lei de Responsabilidade Fiscal, podem chegar até o enquadramento do presidente por crime de responsabilidade, ficaram mais brandas. Elas incluem a redução do limite do teto de gasto para o ano seguinte caso a meta do ano corrente não seja cumprida, e a exigência de o presidente enviar uma carta aberta explicando as razões por não ter cumprido a meta, à exemplo do que já acontece quando o Banco Central não cumpre a sua meta de inflação. “O governo afrouxou as penalidades, desobrigou o contingenciamento e impôs apenas um ônus temporário sobre as despesas em caso de descumprimento da meta”, escreveu a XP em relatório a clientes a respeito das mudanças propostas para o sistema de metas de resultado fiscal. “Isso acaba por gerar um desincentivo ao próprio governo em perseguir o ajuste fiscal nos próximos anos”, acrescenta. Ao comentar as críticas nesta segunda-feira (24), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que “ninguém pune o Banco Central por não cumprir a meta de inflação”. “Não conheço nenhum país que criminalize [o gestor por não cumprir a regra de teto fiscal], mas estamos propondo uma regra robusta, somos os primeiros a propor. Melhor ter uma regra fiscal correta, que se sustente”, acrescentou. Procurado pela CNN, o Ministério da Fazenda afirmou que o que chamou de “descriminalização” da política fiscal está em linha com as legislações mais modernas do mundo e que as sanções mais duras incentivavam a fixação de “metas menos ousadas”. “Entendemos que o incentivo econômico de se evitar a menor taxa de crescimento do gasto em relação ao crescimento da receita é mais eficiente como ‘enforcement’ do que a criminalização da política fiscal, que limita a capacidade do governo de colocar em prática seus programas planejados e traz impactos políticos relevantes”, afirmou a Fazenda, por meio de nota (veja o comunicado completo ao fim). O que muda As metas de primário, fixadas anualmente na lei orçamentária, existem e devem ser seguidas pelo governo desde 2000, quando foram estipuladas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Com a criação do teto de gastos, que entrou em vigor em 2017 e impôs uma trava diretamente sobre as despesas, elas acabaram perdendo protagonismo, mesmo que não tenham deixado de existir. O teto de gastos congela o aumento das despesas do governo acima da inflação, o que acabou rendendo críticas por ser muito rígido e, após uma sucessão de manobras para furá-lo, deve levar ao seu fim. A função do novo marco fiscal apresentado pelo atual governo é substituir o teto de gastos na missão de ser a legislação central a controlar a expansão das despesas e da dívida pública. O projeto precisa agora ser aprovado pelo Congresso Nacional. A proposta apresentada por Haddad faz um casamento das duas coisas: continua havendo um teto de gasto, mas com a possibilidade de um crescimento maior que o atual, casado com o resgate das metas de resultado primário, que deverão ser fixadas anualmente pelo governo. O governo deverá obedecer às duas coisas. Entre as principais alterações feitas no regime de metas fiscais, está a proposta de que o bloqueio de verbas deixe de ser obrigatório e passe a ser opcional. Para isso, o projeto altera o texto original da Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000. O contingenciamento, hoje obrigatório, é um expediente que dever ser feio pelo governo regularmente, ao longo do ano, para ajustar os resultados das contas públicas às metas projetadas no começo do ano pelo Orçamento aprovado. Como é Se verificado que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário (…), os Poderes e o Ministério Público promoverão limitação de empenho e movimentação financeira. Lei de Responsabilidade Fiscal, artigo 9 (Lei Complementar 101/2000, editado) Como fica Se verificado que a estimativa de receitas ou despesas poderá não comportar o cumprimento da meta de resultado primário (…), os Poderes, o Ministério Público e a Defensoria Pública poderão promover limitação de empenho e movimentação financeira. Projeto de novo regime fiscal , artigo 7 (18/04/2023, editado) Cobrança branda “Fica faltando o chamado ‘enforcement’”, diz o economista Murilo Viana, especialista em contas públicas, usando o termo em inglês para o ato de fiscalizar e exigir o cumprimento das leis. “Há os relatórios periódicos ao longo do ano, mostrando a evolução das receitas e despesas e o cumprimento das metas, tanto do primário quanto do teto de gasto, e a ideia do contingenciamento é que o governo faça um ajuste das despesas para se adequar a elas. Mas agora está sendo incluído esse componente voluntário, e quando é voluntário a gente saber o que acontece.” De acordo com o Ministério da Fazenda, a ideia de tirar a obrigatoriedade dos contingenciamentos reside em não forçar os gestores a sacrificarem políticas públicas que eventualmente dependam dessas verbas. “O governante se torna capaz de analisar os motivos que levaram ao desvio da meta para determinar o momento e a forma mais adequada de promover o contingenciamento, no caso em que não haja outra política econômica capaz de retornar o primário para sua trajetória traçada”, disse a pasta em nota. Passado de manobras e impeachment Até o teto de gastos entrar em vigor, em 2017, as metas de resultado primário eram a principal âncora de controle para as despesas e a dívida pública. As manobras para contorná-las, entretanto, eram uma rotina anual em Brasília, e é a volta dessa realidade um dos principais temores dos especialistas em relação a um afrouxamento nas normas. De acordo com um levantamento feito pelo ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa, em 21 anos de existência (até 2021), as metas fiscais foram contornadas de alguma maneira em 13 deles, ou seja, em 61% das vezes, por todos os presidentes do período. Os dados fazem parte de um artigo publicado no ano passado por Barbosa, ex-ministro de Dilma Rousseff, no blog da Fundação Getulio Vargas. Retirar despesas da conta, acrescentar receitas excepcionais ou, simplesmente, mudar a meta para outra mais baixa quando se via que a original seria cumprida estão entre os expedientes mais comuns a que os governantes recorreram. Foi uma dessas manobras, inclusive – o adiamento de gastos para não fechar o ano com um saldo menor do que o estipulado pela meta – que receberam o nome de “pedaladas” e valeram o impeachment de Dilma em 2016. “Como a [nova proposta de] regra de gastos é inconsistente e há baixo enforcement, o seu descumprimento tem grande probabilidade de ocorrer”, diz o economista-chefe da gestora Ryo Asset, Gabriel Leal de Barros, especialista em contas públicas. Piora o quadro, na avaliação dele, o fato de que a arrecadação necessária para fechar as contas dentro das metas que Haddad já deixou traçadas para os próximos anos deve ser muito alta. “Como o aumento de arrecadação para cumprir essas metas é extraordinário, de R$ 150 bilhões por ano e por todo o mandato, a credibilidade e confiança de que as metas serão cumpridas é muito baixa”, afirma. “Descriminalização da política fiscal” Veja a íntegra dos esclarecimentos enviados pelo Ministério da Fazenda, por meio de nota: O novo arcabouço fiscal se situa entre as regras fiscais de terceira geração que surgiram a partir dos desdobramentos da crise econômica e sanitária provocados pela pandemia de COVID-19. Nesse período, a maior parte das regras fiscais no mundo foram flexibilizadas com cláusulas de escape, suspensão temporária ou modificações nos limites numéricos. Atualmente, há convergência internacional de que nos arcabouços fiscais pós-pandemia exista uma maior preocupação com a governança fiscal por meio de incentivos econômicos, ao invés de punições/sanções e criminalização da política fiscal. O contingenciamento não compulsório permite maior gerenciamento do governante que se torna capaz de analisar a conjuntura econômica e os motivos que levaram ao desvio da meta para determinar o momento e a forma mais adequada de se promover contingenciamento, no caso em que não haja outra política econômica capaz de retornar o primário para sua trajetória traçada. Dessa forma, entende-se que o incentivo econômico de se evitar a menor taxa de crescimento do gasto em relação ao crescimento da receita, que nesse governo ocorreria pelo ajuste automático de 70 para 50%, é mais eficiente como enforcement do que a criminalização da política fiscal, tendo em vista que limita a capacidade do governo de colocar em prática seus programas planejados, trazendo impactos políticos relevantes. Ademais, em caso de descumprimento da meta de resultado primário, considerando a banda de tolerância, o Presidente da República deve se justificar frente ao Congresso Nacional e apontar medidas para reequilibrar as contas públicas. Tal lógica é semelhante àquela empregada quando há descumprimento das metas de inflação no âmbito da política monetária administrada pelo Banco Central. Ainda, uma análise do período recente demonstra que a criminalização da política fiscal induz ao estabelecimento de metas de primário mais frouxas com o artifício, por exemplo, da subestimação de receitas, já que a limitação real se dava com o teto de gastos. O administrador público passa a estabelecer metas menos ousadas por constrangimento que nada tem a ver com o interesse público. Em relação às receitas necessárias, o Ministério da Fazenda está convencido de sua capacidade de recuperar o nível médio de 19% das receitas em relação ao PIB por meio do combate a privilégios e ineficiências tributárias.