Um levantamento realizado pela CNM (Confederação Nacional dos Municípios) mostra que faltam médicos na atenção primária em uma em cada três cidades brasileiras. O problema também atinge grandes centros, como Belo Horizonte.
A pesquisa mostrou que um terço das cidades entrevistadas tem falta de profissionais e não suporta atendimentos para a eficiência da rede de saúde pública. O levantamento foi aplicado via call center da CNM aos gestores municipais e alcançou 3.385 municípios, que concentram cerca de 112 milhões de habitantes, segundo dados do IBGE.
Entre as cidades pesquisadas, 979 estão com falta de médicos, o que, na maioria dos casos, já dura mais de três meses.
As prefeituras apontam como dificuldades para contratação a exigência do cumprimento da carga horária semanal de 40 horas, o salário e a escassez de recursos. A falta de infraestrutura na cidade, como cinema, shopping e outros atrativos de lazer, foi apontado como um problema por 17 dos municípios. As gestões disseram realizar processos seletivos e editais de chamamento público para contratação de médicos.
As região Norte e Nordeste são as mais prejudicadas. Sul, Sudeste e Centro-Oeste aparecem na sequência, respectivamente. O problema impacta majoritariamente os municípios de grande porte, embora eles sejam o menor número de respondentes do levantamento. Uma das possíveis explicações para isso é que uma grande parte dos médicos quer se dedicar somente ao trabalho na rede privada ou dividir a atuação entre a área pública e particular, conforme mostra a edição 2023 da “Demografia Médica no Brasil.
A pesquisa também concluiu que o Programa Mais Médicos, do governo federal, “não atende o preconizado em sua origem” — a CNM cita que a falta de enquadramento para grandes municípios agrava a situação. O governo Lula relançou o programa em março e abriu 15 mil novas vagas destinadas ao atendimento da população nas periferias dos centros urbanos e nos municípios do interior do país. Em nota, o Ministério da Saúde informou que tem o compromisso de fortalecer a atenção primária e ampliou as vagas do Mais Médicos e os incentivos profissionais do programa.
‘Mais experientes não querem vir’
A cidade de Guaribas (PI), que ficou conhecida nacionalmente por apresentar perspectiva de vida nos padrões de países pobres da África no início dos anos 2000, sofre com o problema. Distante 660 quilômetros de Teresina, o município que foi palco do lançamento do Programa Fome Zero, em 2003, sofre para atrair médicos — chegou a ficar sem atendimento no fim de 2018, depois que Cuba decidiu sair do Mais Médicos após as condições anunciadas pelo então presidente eleito Jair Bolsonaro.
O secretário de Saúde da cidade, Adiel Andrade, relatou ter tido problemas recentemente para contratar um profissional para repor a equipe. Com 4.276 habitantes, segundo o IBGE, a cidade conta com dois médicos, uma UBS (Unidade Básica de Saúde) e três postos de apoio.
Em maio um médico não manifestou interesse [em vir], então começou a procura por seu substituto. Os médicos que já têm mais tempo na área realmente não querem vir e quando manifestam interesse é um valor absurdo. Então, optamos por contratar um recém-formado, e graças a Deus, a equipe já está completa novamente.
‘Dificuldade de contratação para áreas remotas’
A diarista Adna Castro da Silva, 52, reclama da falta de médicos em Alter do Chão (PA), vila que faz parte do município de Santarém. Segundo ela, o local conta apenas com um médico e uma enfermeira.
Com dores abdominais frequentes, ela precisou passar numa consulta particular, paga por seu empregador, para descobrir que tinha pedras na vesícula. A cirurgia veio quase um ano depois, por meio da ONG Zoé, que leva médicos à região.
A Prefeitura de Santarém confirmou que há dificuldades para contratação de médicos em áreas remotas. Em nota ao UOL, a gestão municipal informou que há três vagas ociosas na área urbana, porque os profissionais que atendiam ali foram classificados pelo Programa Mais Médicos e vão para áreas remotas. “A Secretaria Municipal de Saúde já está agilizando a contratação de novos médicos”, diz a nota.
Cristiane Pereira, 45, a Kika, presidente da Associação de Moradores da Vila Santana do Cafezal, em Belo Horizonte, faz parte da comissão de saúde da comunidade e diz ver o problema diariamente.
Tem vagas abertas, mas é muito difícil um médico que queira trabalhar em comunidade, mesmo que seja pacificada. Aparece um ou outro. Às vezes fica um mês e não volta mais. Às vezes a gente não sabe o porquê — se a demanda é muito grande, se ele tem que atender pacientes de outras equipes que não têm médico, e sobrecarrega demais. E tem também a questão de não ser especialista e ter que atender várias áreas.
Falta de condições de trabalho e plano de carreira
O médico Marcelo Averbach, fundador da ONG Zoé, diz que a fixação de médicos em locais remotos esbarra na falta de condições para o trabalho ou relacionadas à vida familiar. “É preciso pensar em estratégias de planos de carreira para esses profissionais que se dispõem a ir trabalhar nesses locais”, diz ele, comparando o trabalho com o de juízes, que começam em comarcas menores e que migram para centros maiores com o decorrer do temp0.
O médico César Eduardo Fernandes, presidente da AMB (Associação Médica Brasileira), faz a mesma analogia e destaca a importância de um plano de carreira. “Eu acho que os médicos de atenção primária deveriam ser profissionais com carreira de Estado, mais ou menos o que existe na magistratura. Se fixa num pequeno município, mas a depender da sua vontade, do acúmulo de experiência, pode pleitear mudança para centros maiores. Ele presta um concurso e não vai ser admitido desde o início numa grande cidade, tem que fazer uma carreira”.
Para o médico Artur Oliveira Mendes, diretor de Projetos e Pesquisas do Sinmed-MG (Sindicato dos Médicos de Minas Gerais), que trabalha há quase 20 anos na atenção primária, os dados de que faltam médicos de família não são uma novidade.
Muito pouco tem sido feito para resolver os problemas que já são apontados que causam essa má fixação dos profissionais. As cidades, em sua maioria, não têm um plano de carreira. Não oferecem condições para que desempenhem bem seu trabalho. Não tem tido ações que promovam segurança dos profissionais naquelas unidades. A violência verbal é a mais comum, mas tem a violência física. Nenhum profissional vai se fixar em condições adversas.
A Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte diz que a distribuição de servidores da rede muda “diariamente” por causa de desligamentos, demandas temporárias e movimentações internas. A pasta confirmou que das quatro equipes do Centro de Saúde Cafezal, uma está sem médico. O município citou a realizações de concurso público, adesão ao edital do Mais Médicos e banco de currículos como as estratégias adotadas para garantir assistência à população.