das dificuldades naturais a qualquer reforma estrutural, há um agravante no Brasil que são as implicações federativas. As dificuldades de mudanças do sistema fiscal do Brasil são mais de natureza federativa do que de natureza tributária” (Francisco Dorneles)
Depois de aprovada na Câmara na base do atropelo, em que os deputados, em grande maioria não sabia, e muitos ainda não sabem, o que estavam aprovando, a PEC45/19, com todos “penduricalhos” que foram introduzidos de última hora, encontra-se em tramitação no Senado onde, se espera, a correção dos muitos absurdos incluídos.
A PEC foi apresentada na Câmara dos Deputados como um sistema de tributação do consumo baseado no IVA, com alíquota única, sem incentivos fiscais, seguindo os padrões de países da OCDE. Essa foi a narrativa que acompanhou o debate na Câmara e ,fora dela, embora parecesse boa ideia, havia alguns pontos que não correspondiam à realidade da maioria dos países daquela Organização. Além disso, se referiam a realidades muito diferentes da brasileira.
O primeiro ponto é que a maioria expressiva dos países da OCDE não pratica alíquota única, como se constata em seu Relatório de 2022. Outro ponto não considerado, e que não foi enfatizado pelos divulgadores e apoiadores da PEC, é que os países que usam o IVA, com pouquíssimas exceções, são estados unitários. Alguns poucos, como o Canadá, têm dois níveis federativos, mas não impõe seu sistema às províncias.
O Brasil, com três níveis federativos, apresenta características completamente distintas que dificultam a unificação dos tributos de consumo de diferentes entes, como afirmava o ex ministro Francisco Dorneles, recentemente falecido.
É interessante observar que, da PEC original, e das narrativas com que era apresentada, restou pouco, além do número, no texto aprovado pela Câmara, mesmo não considerando os “penduricalhos”, estranhos à matéria do imposto de consumo.
Além das diferenças existentes entre a narrativa e a realidade do IVA em outros países, o fato de que somos uma federação tripartite dificulta, como observava Dorneles, a implantação de um imposto sobre valor adicionado nacional.
Complica, ainda mais, o fato de que a proposta visa muitos objetivos, como mudar a natureza de um imposto, IPI, e uma contribuição PIS/COFINS, para transformá-los em imposto de consumo. Pretende também transferir carga tributária de um setor (Indústria) para outro (Serviços).
Muda a sistemática de incidência do Imposto da origem para o destino. Propõe compensar incentivos fiscais dos estados e estimular o desenvolvimento regional criando dois Fundos, sem especificar suas fontes de financiamento. Altera a distribuição das receitas de quotas partes dentre os municípios.
Para viabilizar essas mudanças, que não representam uma reforma, mas uma disrupção tributária, foi necessário adotar um período de transição de oito anos para os contribuintes. Para os entes federativos a transição é de 50 anos, que será algo inédito no Brasil e no mundo, se não for alterada no caminho.
Para atingir a esses múltiplos objetivos, transfere para a Lei Complementar disposições absolutamente necessárias para a análise do que se está propondo constitucionalizar.
O ponto mais polêmico da PEC 45, a criação do Conselho Federativo, que vai centralizar poderes dos Estados e Municípios, além ser um órgão de arrecadação, normativo, árbitro nos conflitos federativos e, ainda, com competência para apresentar projetos de lei Complementar à Constituição Federal.
Soma-se o fato de que os entes subnacionais não mais poderão conceder incentivos fiscais, o que implica subtrair-lhes, ao menos parcialmente, a autonomia prevista na Constituição como cláusula pétrea.
Como parece que ainda não está suficientemente complexo, anunciam split payment e a auto liquidação das operações, que não são utilizados de forma generalizada na maioria dos países, mas apenas em relação a produtos ou operações específicas, pelos seus efeitos negativos de aumento da burocracia e sobre o capital de giro das empresas.
Permite criar o “cashback” para produtos da cesta básica adquiridos por consumidores de baixa renda, o que geraria muita burocracia, sem falar da esdrúxula possibilidade de instituir a “cesta básica nacional” em país continental e com regiões e hábitos alimentares tão diversificados. Colocar essas “inovações” na Constituição mostra como o texto constitucional está empobrecendo.
Todas essas “novidades” para simplificar o sistema tributário representam grande risco se forem constitucionalizadas, pois, na hora de regulamentar é que se verão as dificuldades para implementá-las.
Não me consta que nenhum país tenha feito uma reforma tão abrangente e complexa. O exemplo às vezes citado da implantação do GST (o IVA) na Índia não serve porque a reforma não foi constitucional, e nem houve impedimento federativo, sendo, portanto, muito diferente da situação do Brasil. Mesmo assim, foi uma reforma ampla e complexa, que pode apresentar alguns ensinamentos para a reforma brasileira.
Estudos destacam que durante o processo de implementação, de 2017 a 2020, e até posteriormente, houve muitas dificuldades, sendo necessárias muitas mudanças das regras, para o fim de litígios e diversidade de interpretações que estavam prejudicando os negócios. Como não foi reforma constitucional as mudanças continuam a ser feitas.
Esse ponto é muito importante porque primeiro vamos constitucionalizar e, depois, fazer a Lei Complementar, a partir das quis serão feitas leis ordinárias, inclusive nos estados e municípios, quando poderão ficar mais explícitas as dificuldades de execução. O texto constitucional da PEC é muito detalhado e pouco esclarecedor para que se possa operacionalizar a reforma.
Nunca na história deste país, e de nenhum outro que eu conheça, houve uma proposta tão ousada e abrangente de reforma tributária. Pouco se discute os riscos do período de transição com a convivência de dois sistemas, como se isso fosse algo simples e já testado aqui ou em outros países.
O impacto sobre as empresas, com relação às inúmeras dúvidas existentes na atual legislação do ICMS, cujas distorções e problemas foram mantidos, e para o setor de serviços, que não tem experiência em operar o sistema de valor adicionado, não se afiguram como irrelevantes.
Mais ainda, como a aprovação da PEC, da Lei Complementar e da legislação ordinária, para que a reforma possa iniciar, deverá demorar, gera-se um clima de incerteza em relação ao futuro, e de insegurança com o presente, que prejudicam decisões empresariais.