Por Beatriz Olivon e Jéssica Sant’Ana
Os riscos fiscais da administração direta da União atingiram R$ 1,162 trilhão. O valor, previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024, ultrapassa e, muito, o das disputas tributárias no Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ), que somam R$ 892,8 bilhões, e representa um salto de mais de 400% em relação ao que consta na LDO de 2023, de R$ 276,6 bilhões.
Historicamente, as disputas tributárias sempre representaram uma fatia maior dos riscos fiscais. Um dos motivos dessa inversão foi a mudança, em 2022, nas regras de classificação dos processos pela Advocacia-Geral da União (AGU). Diversas ações judiciais foram incluídas na parte que trata da administração direta e, por outro lado, disputas tributárias bilionárias foram encerradas nos tribunais superiores.
Dois temas listados chamam a atenção: questionamentos sobre a reforma da Previdência Social de 2019 (ADI 6254) e a discussão sobre a correção do FGTS pela poupança. Os impactos são estimados em R$ 691 bilhões e R$ 295,9 bilhões, respectivamente. São as principais novidades em relação à LDO de 2023.
Os dados que constam na LDO de 2024 são os que foram divulgados pela União em abril do ano passado. Em setembro, esses valores foram atualizados, mas o cenário é o mesmo: os riscos fiscais da administração direta aumentaram em valor, enquanto os tributários caíram.
O principal fator de redução foi a classificação como risco remoto da discussão sobre a possibilidade de incidência de PIS e Cofins sobre as receitas financeiras de instituições financeiras, julgada pelo STF em 2023. No caso do STJ, a estimativa de impacto subiu por causa de duas ações que já estavam listadas no anexo, mas ainda não tinham a estimativa do valor de impacto indicada.
O Tesouro Nacional explicou que a variação dos valores com o passar do tempo pode ocorrer por diversos motivos – vitórias ou derrotas da União ou por alteração pela AGU de valor de disputa ou classificação de risco.
Segundo Breno Vasconcelos, sócio do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados, 15 ações sobre reforma da previdência explodiram o risco fiscal. As ações foram reunidas em um único item, mas tratam de diferentes questionamentos, como contribuição extraordinária, anulação de aposentadorias concedidas, entre outros.
No caso do FGTS, o julgamento está suspenso por pedido de vista do ministro Cristiano Zanin, do STF. Por enquanto, três ministros votaram para que, a partir de 2025, os novos depósitos sejam remunerados pelo valor da caderneta de poupança, sem a obrigatoriedade da distribuição de lucros (ADI 5090).
Por outro lado, houve uma “limpa” nos riscos fiscais tributários, principalmente em decorrência de duas disputas encerradas, de acordo com o advogado. São as ações sobre a validade de critérios de aplicação da não cumulatividade de PIS e Cofins (estimadas em R$ 472,7 bilhões) e sobre os fundos de participação de Estados e municípios (estimadas em R$ 279 bilhões).
No primeiro caso, em novembro de 2022, o STF decidiu que as empresas não têm direito amplo e irrestrito a créditos de PIS e Cofins. O segundo processo foi julgado em dezembro de 2022 e ainda está pendente de recurso.
Na ocasião, os ministros decidiram que os programas de diferimento ou postergação de pagamento de ICMS não violam o sistema constitucional de repartição de receitas tributárias desde que seja preservado o repasse pertencente aos municípios quando do efetivo ingresso do tributo nos cofres públicos estaduais.
Vasconcelos destaca que, nos riscos fiscais tributários, foram mantidas algumas discussões, como a inclusão do ISS na base do PIS e da Cofins (RE 592616). “No tributário, vale uma análise com lupa, mas não tem nenhuma grande surpresa de fato”, afirma.
No STJ, a lista passou a indicar valores de ações relevantes julgadas em 2023. A primeira foi acompanhada de perto pelo governo federal: a exclusão de benefícios fiscais relacionados ao ICMS da base de cálculo do IRPJ e da CSLL (REsp 2010095). A decisão permite a exclusão se cumpridos alguns critérios. O impacto da disputa é estimado em R$ 47 bilhões.
O segundo caso de maior valor é o que trata de créditos de PIS e Cofins na revenda de produtos submetidos à tributação monofásica, realizada à alíquota zero, no regime não cumulativo (Tema 1.093). Em abril de 2022, os ministros do STJ decidiram que as empresas não teriam direito a esses créditos de PIS e Cofins. A tese é estimada em R$ 31 bilhões.
Ainda tramita um pedido de recurso ao STF. Mas é possível que a questão não avance, já que ministros do Supremo consideraram o tema infraconstitucional no passado – ou seja, a palavra final seria do STJ.
O Anexo de Riscos Fiscais é exigido desde que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi editada, em 2001, segundo Gustavo Fernandes, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV EAESP. Indica, acrescenta, eventuais problemas que podem afetar o orçamento, como ações judiciais ou mesmo o financiamento de eventuais isenções. “Se isso não for apresentado o governo incorre em crime de responsabilidade fiscal”, afirma.
O professor explica que o estoque de ações vai se tornando cada vez maior, mas que o governo pode tentar prolongar o pagamento de precatórios – como feito na gestão anterior ou como proposto no fim do ano pelo atual ministro da Fazenda, com a limitação das compensações tributárias. “Ou o governo federal tem que arrecadar mais ou se endividar mais”, diz.
As duas grandes alterações trazidas pela AGU na classificação dos riscos permitiram colocar como de risco “possível” – portanto, que precisam constar no anexo – casos afetados como repetitivos pelo STJ ou TST e ações de controle de constitucionalidade no Supremo, como as que tratam da reforma da Previdência Social e da correção do FGTS.
De acordo com Maria Raphaela Matthiesen, também do Mannrich e Vasconcelos Advogados, a afetação de um recurso como repetitivo significa que a demanda tem efeitos que transcendem as disputas individuais. Então, acrescenta, há de fato um risco de efeitos sistêmicos. “Por isso faz sentido que seja computado independente de já ter decisão desfavorável.
Ao Valor, o advogado-geral da União substituto, Flavio José Roman, destaca que a pasta tem empregado “esforços inéditos” para garantir maior previsibilidade e transparência ao volume de riscos fiscais judiciais. “O acompanhamento e a produção de informação de maior qualidade são, bem por isso, aprimorados a cada exercício, tudo no âmbito do Conselho de Monitoramento de Riscos, criado especificamente com esse propósito pelo presidente Lula”, afirma, acrescentando que a transparência deve ser o norte. “A sociedade precisa ter clareza dos impactos dos riscos fiscais judiciais para o equilíbrio das contas públicas.”