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Reforma Tributária
Reforma tributária: PLP 108 afronta a legalidade
Há tempo de mudar; o desequilíbrio nas relações não é salutar ao estado democrático de direito
09/09/2024
Valor Econômico

Por Eduardo Salusse

 

Há uma bomba silenciosa no processo legislativo que regulamenta o Comitê Gestor do IBS. Ela ainda pode e deve ser desarmada. Trata-se do disposto no artigo 91, parágrafo 3º, do PLP 108/24, que trata especificamente da competência do processo administrativo tributário do IBS.

Diz esse dispositivo que: ressalvado o disposto neste artigo, fica vedado às autoridades julgadoras, no âmbito do processo administrativo tributário, afastar a aplicação ou deixar de observar a “legislação” tributária sob o fundamento de inconstitucionalidade ou ilegalidade.

A palavra legislação pode passar despercebida para leigos, mas ela contempla, nos termos do artigo 60 do Código Tributário Nacional (CTN), não apenas as leis, os tratados e as convenções internacionais, mas também os decretos e as normas complementares que versem sobre tributos e relações a eles pertinentes. Ou seja, de forma genérica diz respeito às leis e atos administrativos “não leis”.

Isso significa que, quando determinado contribuinte sofrer uma autuação fiscal e apresentar as suas defesas e recursos para o órgão julgador administrativo do IBS, os julgadores serão impedidos, por exemplo, de afastar uma portaria, uma instrução normativa ou um decreto (atos administrativos infralegais) que violem frontalmente uma disposição de lei. É esse o dispositivo que se pretende aprovar e que, sem sombra de dúvida, não abriga os princípios constitucionais prestigiados na reforma tributária.

Será uma espécie de carta branca para a administração tributária interpretar e orientar o seu quadro de auditores fiscais, por portarias, resoluções, instruções normativas, decretos ou ato que os valha, a exigir obrigações ou restringir direitos além dos limites definidos pela lei. E os auditores, impotentes, a eles ficarão vinculados, não podendo adotar conduta diversa.

O que ocorre hoje, tanto no processo administrativo federal que tramita perante o Conselho Administrativo Fiscal (Carf) (Decreto nº 70.235/72), quanto no processo administrativo do Estado de São Paulo que tramita perante o Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) (Lei nº 13.457/09) e na maioria de outros órgãos julgadores administrativos, há a competência de o órgão afastar atos infralegais que violem a lei.

 

Este controle de legalidade no processo administrativo não é uma mera opção, mas é uma obrigação de toda a administração decorrente do artigo 37 da Constituição Federal de 1988. Soa muito inadequado e contraditório – para usar palavras amistosas – pretender proibir que a administração tributária, que é obrigada a observar o princípio da legalidade, seja proibida de afastar normas infralegais que violem a mesma legalidade. E pior, a restrição dirige-se ao órgão responsável por rever os atos da administração em sede de processo administrativo tributário instaurado por iniciativa do contribuinte que se sente lesado por eventual abuso de poder da administração tributária.

O que parece é que não se deseja qualquer controle, deixando o destinatário da exigência ilegal com poucas opções de solucionar a questão de forma célere e pouco custosa, empurrando-lhe a opção de um Judiciário moroso e caro. Por certo, conseguirá o poder público arrecadar algo de alguns, reafirmando o já denunciado fenômeno da inconstitucionalidade útil. Seria uma espécie de “fishing expedition” do direito tributário.

O processo administrativo tributário presta-se justamente à garantia dos direitos dos contribuintes jurisdicionados, conforme consta expressamente no capítulo da Constituição Federal que trata dos direitos e garantias fundamentais, notadamente no artigo 5º, LIV e LV.

Não são nada raras as situações em que a administração tributária exacerbou o seu poder de regulamentar as leis, editando normas infralegais que ultrapassavam os limites legais.

Mas a situação piora se contextualizada com outras situações, fechando um ciclo perigosíssimo e altamente convidativo ao arbítrio fiscal por algum governo futuro inábil ou mal intencionado.

O poder público edita as normas, interpreta, fiscaliza, lança, cobra, arrecada e gasta o recurso do contribuinte. Dentre as normas infralegais travestidas de “interpretativas”, pode haver a imposição de exigência manifestamente contrária ao texto de leis.

O crédito tributário constituído será inscrito em dívida ativa, já sujeitando o contribuinte a medidas administrativas de cobrança, como o protesto, a negativação (SPC, Serasa, Cadin), averbação pré-executória, bloqueio de licenças em agências regulatórias, restrições de financiamento em bancos oficiais, proibição de distribuir dividendos, rescisão de contratos públicos, perda de incentivos fiscais, suspensão de CPF, baixa de CNPJ e outras. O contribuinte que resolve ir à Juízo depara-se com um crédito majorado em 20% com encargos legais e honorários de sucumbência.

Na disputa judicial, a Fazenda possui privilégios processuais, como prazos em dobro, isenção de custas e outros. Os tribunais superiores possuem parte dos seus assessores provenientes de órgãos fazendários, inclusive procuradores fiscais que acabam beneficiários por sucumbências em teses vencidas pelo Estado, em teórico e potencial conflito de interesses. Os processos são lentos, tramitam por cerca de 10 anos e, quando vence o contribuinte, modula-se a decisão em favor do Estado vencido infrator, por vezes definindo o início dos efeitos daquela inconstitucionalidade para um momento futuro.

Para piorar, pretende-se reduzir os honorários de sucumbência dos advogados dos contribuintes (tema 1255 no STF), mas somente quando a Fazenda Pública for vencida, mitigando a penalidade sucumbencial que a lei legitimamente lhe impôs como instrumento pedagógico. Se a disputa tratar de tributos indiretos, a Fazenda vencida não restitui ao argumento de que o tributo foi repassado ao consumidor final (artigo 166 do CTN). E quando não tem jeito, os tributos indevidamente pagos pelo contribuinte viram precatórios, cujo fim é o calote em quase a totalidade dos Estados e Municípios do país.

Em meio a este cenário, o processo administrativo é um meio célere, técnico e eficiente de controlar abusos e ilegalidades, tal como funciona há mais de 100 anos no Carf e há quase 95 anos no TIT.

Mas agora, não satisfeitos com o conjunto de instrumentos de coerção e coação em face dos contribuintes, o PLP dispõe a retirar um dos poucos instrumentos à disposição do contribuinte para controlar eventuais abusos de autoritários de plantão que possam assumir a administração tributária em algum momento no futuro, já sob a égide do novo sistema da administração tributária sobre o consumo.

Há tempo de mudar. O desequilíbrio nas relações não é salutar ao estado democrático de direito e em nada contribuirá para a harmonia social.