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Políticas fiscal e monetária em choque
Desde 2022 saímos de um gasto anual de R$ 1,8 trilhão para R$ 2,24 trilhões. No agregado de dois anos, haverá impulso fiscal via despesas próximo do que foi entregue em 2020, ano crítico da pandemia
16/10/2024
Valor Econômico

Por Rafaela Vitória

 

“Não existe responsabilidade social sem responsabilidade fiscal”. Essa frase vem sendo repetida diversas vezes desde a última campanha eleitoral para alertar que gastos sociais são importantes no Brasil, mas, sem um ajuste fiscal crível, o custo da expansão das despesas públicas poderá ser bem maior que o seu benefício.

Mesmo com a manutenção do crescimento do PIB desde o início do novo governo em 2023 estamos observando um efeito colateral negativo de uma expansão fiscal muito além da nossa capacidade: o elevado patamar de juros e a consequente aceleração da dívida pública. O caminho traçado até agora trouxe de volta a memória da última crise fiscal de 2015 e sua s consequências para a economia. Como resultado, os preços dos ativos no mercado, principalmente as taxas de juros, mostram a maior aversão a risco por parte do investidor. E justamente os juros altos por período prolongado podem, além de acelerar a dívida pública, inviabilizar o necessário investimento em infraestrutura, o que permitiria crescimento econômico maior por mais tempo.

A deterioração na percepção do risco fiscal tem base em dois fatores: o forte aumento dos gastos e a menor previsibilidade sobre o cumprimento do arcabouço fiscal. Os gastos públicos tiveram alta acumulada de 15% acima da inflação em quase dois anos, subindo de 17,9% do PIB em 2022 para 19,1% em 2024. A PEC da Transição, aprovada em dezembro de 2022 e que havia sido criticada por abrir um espaço acima do limite anterior do teto de gastos de R$ 170 bilhões, foi apenas o início de uma expansão que já acumula R$ 400 bilhões/ano.

Desde então, saímos de um gasto anual de R$ 1,8 trilhão para R$ 2,24 trilhões. No agregado de dois anos, vamos ter um impulso fiscal via despesas próximo do que foi entregue em 2020, ano crítico da pandemia. E com uma enorme diferença na conjuntura atual: um cenário de crescimento econômico robusto e mercado de trabalho aquecido, com a taxa de desemprego na mínima histórica, momento do ciclo que sugere maior austeridade.

Além do déficit primário estrutural, que estimamos estar próximo de 1% do PIB, a menor credibilidade do novo arcabouço fiscal resultou em uma desancoragem das expectativas de inflação, o que por sua vez demanda uma política monetária mais restritiva por mais tempo. O nível de juros no Brasil é um dos maiores no mundo e reflete praticamente um cenário de estresse. Com taxa de juros real acima de 6% por mais de 3 anos, a inflação ainda não convergiu para o centro da meta, enquanto o déficit nominal voltou para o patamar de 10% do PIB, semelhante ao que vimos na crise em 2015.

Enquanto no restante do mundo o afrouxamento monetário ganha tração, aqui no Brasil o Banco Central voltou a subir a Selic devido à maior preocupação com a atividade. A política monetária, mesmo bastante restritiva, não tem sido suficiente para a credibilidade, e sua potência perde efeito com a atual desancoragem.

Expansão fiscal trouxe impulso para a economia no curto prazo, mas o custo veio mais rápido que em outros ciclos

Entramos em um equilíbrio ruim: fiscal expansionista, que estimula em demasiado o consumo, e monetário contracionista, que encarece o custo de capital, mantém o investimento baixo e limita o crescimento potencial da economia no médio e longo prazo. Desse modo, a expansão fiscal trouxe impulso para a economia no curto prazo, via elevação do consumo das famílias, mas o custo veio mais rápido que em outros ciclos.

A menor transparência e credibilidade no novo arcabouço também acrescenta incerteza no atual cenário. Enquanto o arcabouço anterior era mais claro no limite do gasto total , a regra atual é bastante permissível. Despesas são criadas sem fontes, créditos extraordinários são abertos sem aprovações de outras matérias e a necessidade de cumprimento da meta não parece alterar a atual urgência de controle das despesas obrigatórias e melhor planejamento. Por exemplo: o último relatório de avaliação bimestral ainda traz subestimação de despesa, que impactou na elaboração da LOA de 2025 e ainda liberou o contingenciamento nos últimos meses do ano. O governo prevê, na prática, um déficit primário de R$ 69 bilhões, cumprindo a regra devido a gastos que foram excluídos da meta fiscal. Essa projeção, se realizada, alcança apenas o limite inferior da meta.

Em meio a todos esses questionamentos tivemos uma revisão positiva de rating pela Moody’s. O que essa avaliação nos diz? A boa notícia vem principalmente da maior resiliência da economia brasileira nos últimos anos, fruto das diversas reformas realizadas. Além disso, a perspectiva de um ajuste fiscal prometido pelo governo pode de fato resultar na redução do déficit primário, via revisão de gastos obrigatórios, correção de irregularidades e, principalmente, a potencial reavaliação das desvinculações. Essas medidas podem também desaquecer a economia e contribuir para conter a inflação, abrindo espaço para uma queda mais significativa dos juros, o que por sua vez contribuiria para o ajuste fiscal de longo prazo.

O governo não pode acomodar no atual equilíbrio, com juros reais acima de 6% e o estresse no arcabouço fiscal, gastos fora das regras. A perspectiva positiva de novos upgrades pelas agências de classificação de risco pode ser um incentivo para que o rumo do ajuste fiscal seja de fato cumprido, reconquistando também a credibilidade do mercado. Mas, antes disso, precisamos ver sinais mais contundentes de compromisso fiscal.