Por Maria Clara R. M. do Prado
As tratativas políticas em torno da chamada “revisão dos gastos públicos” com vistas ao melhor alinhamento das contas do orçamento de 2025 com a receita, acabam por abrir espaço para o encaixe de despesas que normalmente fogem ao controle do governo. É o caso dos juros da dúvida pública federal. É possível fazer-se uma estimativa a priori, mas impossível cravar o valor mesmo aproximado daquele dispendido com antecedência.
Não se sabe o que o governo federal fará com os recursos cuja destinação em 2025 pretende rever através de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC), mas que, em princípio, subtrairia dinheiro de alguns dos programas sociais que são a cara do próprio presidente Lula. Sabe-se, contudo, que o Ministério da Fazenda tem se esforçado para apresentar no fim do ano o prometido déficit primário zero, um pouco mais, um pouco menos. Aliás, já fez ajustes nos gastos para chegar à tal meta ainda em 2024.
A estratégia do Poder Executivo de buscar um espaço no orçamento para cobrir despesas correntes, como é o caso dos juros, não é nova. Foi bem sucedida no início de 1994, quando o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, e a equipe responsável pelo Plano Real, conseguiram a aprovação no Congresso Nacional da PEC que criou o Fundo Social Emergência (FSE) que, diga-se, não era fundo nem social e muito menos de emergência.
O FSE desvinculou 20% dos recursos orçamentários de despesas obrigatórias durante dois anos de modo a que ficassem disponíveis para cobertura de outros tipos de gastos do governo federal. Boa parte foi usada com despesas da dívida pública (juros e amortizações). Nos anos seguintes, as iniciativas para equilibrar as contas públicas limitaram-se à ponta da receita, com aumento de impostos e até da criação de alternativas aberrantes, como foi o caso da CPMF, a tal Comissão Provisória sobre Movimentação Financeira, que passou a taxar as operações efetuadas através da rede bancária. Teve vigência de 1996 a 2007 e arrecadou um bocado de dinheiro para o governo.
Do ponto de vista orçamentário e puramente contábil não há diferença quando se muda a verba destinada a uma rubrica para outra. Não se vai entrar aqui no mérito das implicações políticas que isso possa ter, pois podem ser várias. O relevante é fixar que o orçamento discorre sobre números, entre o entra e o que sai, de modo que idealmente, ao fim e ao cabo, o lado da despesa no mínimo seja equivalente ao da receita. Se falta dinheiro, as contas estão desequilibradas e o governo precisa ir ao mercado para se financiar com a emissão de títulos da dívida pública ou aumentar impostos ou, alternativamente, valer-se da prerrogativa que só ele tem de emitir dinheiro a custo zero.
Ocorre que além das contas do orçamento, o Brasil usa há muito tempo o critério de déficit público primário (que não considera o impacto dos juros da dívida publica nas despesas) quando faz a mensuração do resultado fiscal através do conceito da Necessidade de Financiamento do Setor Público (NFSP). Considera o total de dinheiro necessário para o governo cobrir os gastos excedentes da receita.
Esse jeito de mensurar a situação fiscal tem origem nas recomendações do Fundo Monetário Internacional (FMI) e é usado por todos os países. Só que, nos demais, o critério usado é o nominal, modalidade em que também os juros da dívida são incluídos nos cálculos porque, afinal, juro de títulos do governo também é despesa e, diga-se, uma das mais altas do orçamento. Vale lembrar que o Brasil também mede a NFSP pelo conceito nominal, mas fica sempre em segundo plano, como se não tivesse a menor importância nos dados do setor público.
O governo, por conveniência, estabelece suas metas fiscais pelo conceito de déficit primário, como se os juros não fizessem parte de suas obrigações. O chamado “mercado”, por sua vez, finge que o conceito nominal não tem importância porque isso permite encaixar qualquer aumento de juros da dívida no cálculo do déficit, tornando-o, assim, palatável. O Banco Central também faz vistas grossas porque, afinal, já tem o presidente Lula no seu pé de modo que quanto menos atenção se chamar para o conceito nominal do déficit, melhor.
Para se ter uma ideia da diferença de percepção que cada conceito imprime à situação fiscal do país não é preciso ir muito longe. Basta consultar os dados divulgados regularmente pelo Banco Central. O último relatório traz a posição de agosto deste ano, de modo que, considerando o acumulado em doze meses, o déficit público brasileiro pelo conceito nominal estava em 9,81% do PIB, enquanto que o déficit primário (sem os juros) representou 2,26% do PIB, bem acima da meta do ministro Haddad, que persegue esse conceito, , mas mais próximo do prometido resultado zero. Nada menos do que o equivalente a 7,55% do PIB representou os gastos com os juros no mesmo período.
Quando reduz os gastos vinculados para colocar o dinheiro, por exemplo, na rubrica juros, o governo não altera contabilmente o orçamento, mas isso faz diferença no déficit primário: a despesa adicional com juro é colocada em segundo plano, enquanto que a redução das despesas, digamos, “revistas” ajuda na obtenção de um resultado primário melhor.
Alguém dirá que, com juros tão altos, seria impossível determinar uma meta fiscal pelo conceito nominal. Ocorre que nos demais países é o conceito nominal que conta. Na União Europeia, o limite do déficit publico está fixado em 3% do PIB, em termos nominais. E, para não ficarmos muito longe, o México trabalha com meta de 3,5% do PIB para 2025, com expectativa de fechar este ano acima de 5% do PIB. Também o Chile usa o conceito o nominal como referência.
Há discrepâncias para todos os lados no que diz respeito às contas públicas do país. O orçamento é inchado pelas despesas vinculadas, pelos juros da dívida pública e, mais recentemente, passou a ser abduzido pelos parlamentares que mordem fatias cada vez maiores dos recursos com emendas orçamentárias cujo destino ninguém sabe, ninguém viu. Aos contribuintes, resta a obrigação de pagar os impostos.