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A dura batalha de Haddad pela meta fiscal
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Felipe Salto

 

O ministro da Fazenda Fernando Haddad vive o momento mais difícil de sua gestão. A sanha por gastos explica a pressão para a alteração da meta fiscal de 2024. Nessa queda de braço, dentro do próprio governo, espero que prevaleça a agenda da Fazenda, mas as incertezas aumentaram nos últimos dias.

De onde vêm as metas fiscais?

A chamada meta fiscal é fixada para o resultado primário do Governo Central. Ele é calculado pela diferença entre as receitas e as despesas, excluídos os gastos com juros da dívida pública, porque têm vida própria. Eles derivam da política monetária, das necessidades financiamento do governo e da disposição do mercado para emprestar sua poupança a fim de cobrir os déficits públicos.

A contenção dos déficits primários reduz o custo de financiamento da dívida. Quanto melhores as perspectivas a respeito da capacidade do governo de equilibrar suas receitas e despesas, menores os juros requeridos por aqueles que têm dinheiro para comprar títulos públicos e financiar o governo. Daí a importância da responsabilidade fiscal permanente.

Sob essa lógica, em 1999, o Brasil adotou a meta de resultado primário. Com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, a LRF (Lei Complementar nº 101, de 2000), a fixação de metas anuais de resultado primário, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), passou a ser o coração da política fiscal.

O Brasil apresentou uma melhora expressiva das condições de sustentabilidade da dívida pública em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), por pelo menos uma década. Os governos FHC e Lula executaram a política de geração de superávits primários, que começou tardiamente, é verdade. Desde a concepção do Plano Real, ainda no governo Itamar Franco, a ideia de um programa de ajuste fiscal já estava nos planos.

Sabia-se, pelos trabalhos dos economistas Edmar Bacha e Eduardo Guardia, que o déficit público real seria “descoberto” na ausência da ajuda camarada da inflação. É que a alta descontrolada dos preços, até meados de 1994, inchava as receitas do governo e produzia uma falsa impressão de normalidade nos orçamentos públicos.

De todo modo, avançamos. Os números são estes: a dívida pública líquida, que desconta o caixa, as reservas internacionais e outros ativos do governo da soma dos seus passivos totais, passou de 59,9% do PIB, em 2002, para 32,2% do PIB, em 2012. O superávit primário médio, de 2002 a 2012, foi de 3%. Entre 2002 e 2008: de 3,4%.

A partir de 2009, a contabilidade criativa promovida no regime das metas fiscais abalou a credibilidade desse sistema. Algumas despesas, a exemplo dos dispêndios do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), eram descontadas para fins de verificação da meta fiscal. Isso afetou as expectativas, os juros e o crescimento econômico. A piora das contas públicas pôde ser constatada a olho nu a partir de 2014.

Do teto de gastos ao arcabouço fiscal

A resposta veio em 2016, com o famigerado teto de gastos, por meio da Emenda Constitucional nº 95. Segundo essa regra, o gasto primário só poderia crescer pela inflação passada. Não funcionou. Faltou combinar com a Constituição de 1988, com os direitos e despesas ali garantidos.

O terceiro Governo Lula nasceu sob a desconfiança do mercado quanto ao seu compromisso na área fiscal. Dizia-se que abandonaria o antigo teto para não colocar nada em seu lugar. Contudo, a PEC da Transição (Emenda 126), que criou despesas novas não previstas para 2023, também introduziu uma obrigação para o governo: apresentar uma lei complementar com novas regras para as contas públicas.

Era o embrião do Regime Fiscal Sustentável ou Novo Arcabouço Fiscal, como ficou mais conhecido, concretizado na Lei Complementar nº 200, de 2023. Principal avanço da agenda econômica, sem dúvida. Trocou-se o antigo teto de gastos – que já batia pino há um bom tempo – por uma regra flexível, mas capaz de ancorar as expectativas dos agentes econômicos.

O arcabouço baseia-se em dois eixos: metas para o resultado primário e limite para o crescimento das despesas. Um liga-se ao outro por meio de uma inovação em relação à lógica da LRF: a previsão de sanções para o caso de rompimento da meta de primário.

As metas de primário, nesse novo modelo, ganharam bandas de 0,25% do PIB para cima e para baixo. A meta é “zero” para 2024, mas o déficit pode chegar a até 0,25% do PIB ou R$ 28,8 bilhões. Já o limite para o crescimento dos gastos primários é calculado assim: 70% vezes a taxa de variação passada das receitas líquidas. Exemplo: para 2024, o governo calculou que, como a receita líquida cresceu 2,4%, até junho de 2023, o crescimento do limite de gastos será de 70% disso, ou seja, 1,7%.

Dessa forma, temos as seguintes promessas para 2024: a) zerar o déficit, que ficará em 1,1% do PIB, em 2023, pelas nossas projeções na Warren Rena; e b) garantir que as despesas cresçam a 1,7% em termos reais. Há ainda outras regras específicas, mas estas são as principais.

Os efeitos de eventual mudança da “meta zero”

A pressão sobre a Fazenda é para que a meta mude de zero para 0,5% do PIB. Como o mercado já projeta déficits maiores, o “zero” seria um capricho, segundo os detratores da agenda fiscal. As projeções estão, efetivamente, ao redor de 0,8% do PIB. Minha estimativa é um déficit primário de 0,74% do PIB para o ano que vem.

Além disso, parte do governo e parlamentares parecem desejar a mudança da meta com o objetivo de evitar o contingenciamento (espécie de congelamento) de investimentos, contidos nas despesas discricionárias (não obrigatórias), fixadas em R$ 211,9 bilhões na proposta orçamentária para 2024.

Na Warren Rena, nossas estimativas indicam um corte necessário de R$ 40 bilhões, mas isso para entregar um déficit primário de 0,74% do PIB. Essa necessidade se dá por considerarmos efeitos menores para a agenda de recuperação de receitas em tramitação no Congresso e mesmo da nova Lei do Carf (tribunal administrativo tributário para resolver contendas entre contribuinte e Fisco), já aprovada.

Para ter claro, ainda que se altere a meta fiscal, de zero para -0,5% do PIB, por exemplo, com um limite inferior de -0,75% (lembrando que a margem de -0,25% foi carimbada na LC 200), o governo teria de cortar cerca de R$ 40 bilhões.

O único jeito de evitar qualquer corte nos R$ 211,9 bilhões, um patamar, aliás, bastante alto para o padrão histórico recente, seria colocar a meta em algo como -1,0% do PIB. Somada à banda fixa de -0,25%, o déficit máximo permitido saltaria para 1,25% do PIB.

Neste caso, o caldo entornaria rapidamente, porque um déficit tão alto significaria entregar, no ano que vem, um resultado tão ruim quanto o previsto para 2023. O apelo é direto: respeitem a LC 200, já sancionada pelo Presidente Lula, e façam valer o arcabouço fiscal.

Se a meta for rompida, no ano que vem, ao menos estaremos com um déficit melhor do que o de 2023 e, tão importante quanto, os mecanismos de ajuste automático da nova regra fiscal serão ativados. O rompimento da meta zero apertaria o limite para o crescimento de gastos, uma importante inovação da LC 200 em relação à LRF.

Haddad enfrenta uma batalha dura, mas central para a preservação da sua agenda. A meta fiscal zero não é uma birra. Na verdade, modificá-la equivaleria a jogar pela janela a boa possibilidade posta pela queda dos juros e da inflação e a credibilidade conquistada pela aprovação do arcabouço. Colocaríamos a perder uma avenida de possibilidades.

A deterioração das trajetórias da dívida e do déficit, certamente, seria relevante. É hora de brigar, mostrando que o gasto público ficará em patamar expressivo, sob o arcabouço, de quase 1/5 do PIB, mas estará controlado. É falsa a dicotomia déficit zero contra gastos públicos.

Com o arcabouço, os gastos não vão diminuir, mas, sim, se estabilizar em relação ao PIB. Esse foi um ganho, a meu ver, do arcabouço. Regra fiscal boa é regra duradoura e capaz de melhorar o quadro geral das contas do governo, como ocorreu com as metas de primário e a LRF.