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Brasil está correndo severo risco fiscal, diz Márcio Holland
Ex-secretário do governo Dilma alerta para o risco de Lula 3 repetir cenário fiscal vivido no primeiro mandato da ex-presidente
04/10/2024
Valor Econômico

Por Anaïs Fernandes

 

Não só frustrações recorrentes com resultados fiscais viraram a realidade do Brasil nos últimos dez anos, como, nos próximos dez, isso deve continuar, alerta Márcio Holland, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EESP). “Infelizmente, o Brasil não endereçou o assunto fiscal como deveria.”

Para o economista, o quadro atual lembra o que ele via em 2013 e 2014, quando era secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Naquela época, diz, o ajuste fiscal foi adiado para 2015, depois das eleições presidenciais que reconduziram Dilma Rousseff (PT) a um breve segundo mandato. “Quando você adia ajuste fiscal, o custo de o equilíbrio ser alcançado é muito maior. Foi isso que aconteceu com o Brasil de 2013 a 2017 e é isso que tende a acontecer agora.”

Com eleições em 2026, um Brasil polarizado politicamente e o pleito municipal deste ano antecipando a disputa majoritária futura, Holland diz ver chance de o ajuste continuar sendo adiado. “O Brasil está correndo severo risco fiscal.”

Para Holland, o atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tendo sido “uma contenção” e “uma âncora muito importante”. Por outro lado, aponta, Haddad tentou conduzir um equilíbrio fiscal com esforço via arrecadação. “Eu lamento muito que a agenda de gastos começou a aparecer só agora”, diz Holland. “E eu lamento muito que vai ficar tarde. A gente vai ter um Lula 3 muito parecido com Dilma 1”, afirma.

O crescimento mais forte do Produto Interno Bruto (PIB) até ajuda o fiscal no curto prazo, reconhece o professor. “Agora, quanto tempo isso vai durar?”, questiona. “Na beira do abismo, a gente está se equilibrando.”

No fim de 2010, Holland se preparava para dar um tempo da função de pesquisador no Brasil, ficar um ano como visitante na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, e se dedicar a um livro-texto sobre finanças internacionais, quando recebeu telefonema com convite para integrar a equipe da Fazenda de Guido Mantega, onde ficou até o fim de 2014. Prestes a completar dez anos, seu livro “A economia do ajuste fiscal: por que o Brasil quebrou?” (editora Elsevier, 2015) é, segundo Holland , fruto de notas internas que ele foi escrevendo ao longo daquele ano sobre suas preocupações com os caminhos da economia brasileira.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista.

Valor: Em 2024, faz dez anos da reeleição de Dilma Rousseff, do início da recessão mais longa e profunda, simultaneamente, da história do Brasil e também da sua do cargo que ocupava no Ministério da Fazenda. Como foi esse momento?

Márcio Holland: Entrou o Joaquim Levy [como ministro] e nem houve discussão sobre continuar, porque você entra em exaustão, nem considera a possibilidade. O governo queria que eu continuasse em outra posição, mas eu optei por sair. Sempre achei que ia sair pouco depois, mas fiquei muito tempo. Fui o secretário de Política Econômica mais longevo da história do ministério. Não sei se isso é bom ou ruim. Fiquei até dezembro de 2014, com algumas incumbências para janeiro de 2015, porque tinha a discussão das medidas de ajuste fiscal. Ao longo de 2014, preparamos corte de gastos, recuperação de arrecadação, reonerações – o que depois foi chamado de “Plano Levy”. Esse pacote estava pronto, mas era difícil de anunciar [em 2014], era ano de eleição.

Valor: Qual era o clima na Fazenda no fim de 2014? Havia a leitura de que uma crise se instaurava?

Holland: De janeiro para fevereiro de 2014, fiz várias reuniões com economistas de bancos para discutir a questão fiscal. Preparei, inclusive, nota sobre isso e coloquei a possibilidade de rebaixamento da nota de crédito do país. O problema de governo é que você vive uma certa solidão, às vezes, não pode compartilhar. Mas era uma situação na qual, já em janeiro de 2014, estava muito claro que o Brasil ia ter dificuldades fiscais. Esse problema era identificável, na verdade, desde meados de 2012, só que a presidente [Dilma] tinha popularidade muito alta. Mas 2013 já foi ruim, teve muita movimentação de falar que houve fechamento das contas públicas com contabilidade criativa. Obviamente, isso cria embaraços internos. Houve também as intervenções na energia, alterando contratos, e o setor ficou bem mal humorado. Começa a ter deterioração do ambiente, de modo que, quando acaba 2014, fica muito claro que o país estava com dificuldade de fechar as contas.

Valor: No seu livro, que também foi escrito há quase dez anos, o sr. diz arriscar antecipar que frustrações recorrentes com resultados fiscais seriam a nova realidade brasileira. Isso se concretizou?

Holland: Eu tenho convicção de que, nesses últimos dez anos, sim. E eu lamento informar que, nos próximos dez, também. Infelizmente, o Brasil não endereçou o assunto fiscal como deveria. Muito menos no governo em que eu estava, que foi um governo em que houve expansão de gastos, aumento de desonerações. Em boa parte, isso ocorreu por causa da crise na Europa em 2011, 2012, mas, depois, perdeu o sentido. Tinha de fazer a retirada das medidas, que foi adiada para depois das eleições de 2014. Só que, quando você adia ajuste fiscal, o custo de o equilíbrio ser alcançado é muito maior. Foi isso que aconteceu com o Brasil de 2013 a 2017 e é isso que tende a acontecer agora. Daí, a grande simetria desse tempo. Nós estamos adiando um ajuste fiscal. E eu estou antecipando, com riscos de análise, que, como há eleições em 2026, o Brasil se polarizou muito mais e as eleições majoritárias já estão em jogo nas eleições municipais, existe uma chance de a gente adiar esse ajuste de novo. O Brasil está correndo severo risco fiscal.

Valor: O sr. diz, também no livro, esperar que os erros cometidos naqueles últimos anos sirvam de aprendizado. Olhando o governo Lula 3, acha que aprenderam?

Holland: Eu acho que, hoje, diferente do ministério em que eu estava, o Fernando Haddad está tentando conduzir um equilíbrio fiscal, com esforço via arrecadação. Eu lamento muito que a agenda de gastos começou a aparecer só agora e não de forma genuína. E eu lamento muito que vai ficar tarde. A gente vai ter um Lula 3 muito parecido com Dilma 1, que foi um período em que, em certo momento, já havia a necessidade de ajuste fiscal, sobretudo a partir de 2012. No caso do Haddad, eu diria que, desde o início do governo, ele deveria ter anunciado o arcabouço com medidas de corte de gastos, além de recuperação de arrecadação.

Em janeiro de 2027, um novo governo vai ter de anunciar uma nova regra fiscal”

Valor: O corte de despesas veio tarde e de modo insuficiente? Porque ele tem sido muito baseado, por ora, em pente-fino de benefícios…

Holland: O que ficou extremamente grave… Se você olhar a evolução dos benefícios, do Benefício de Prestação Continuada (BPC), é impressionante: em dez anos, ele aumentou três vezes [em valores].

Valor: No livro, o senhor fala muito de pensão por morte. Agora, temos a questão do BPC. Estamos sempre às voltas com algum programa social mal desenhado?

Holland: É preciso rever todos os critérios de elegibilidade de todos os programas de transferência de renda. Uma coisa que também assusta muito são os benefícios de Previdência no Orçamento, que beiram R$ 1 trilhão, ou 47% da receita líquida. Praticamente metade da receita líquida vai para uma única rubrica. A conta não fecha.

Valor: Economistas têm dito que é grande a chance de o governo conseguir cumprir, ao menos neste ano, a meta de resultado primário, no limite inferior da banda…

Holland: Não gera redução de dívida. O arcabouço foi construído com regras de déficit primário, primário zero e pequenos superávits, e nenhum desses superávits é suficiente para estabilizar a dívida. Além disso, estamos em um ciclo de alta de juros. A dívida está piorando em denominação, vai piorar em maturidade e está crescendo. O novo arcabouço fiscal não ancora a economia para o médio prazo. Portanto, não é sustentável.

Valor: Qual é seu prazo?

Holland: Em janeiro de 2027, um novo governo vai ter de anunciar uma nova regra fiscal. Em 2016, anunciamos o teto de gastos. Não durou muito. O governo anterior [de Jair Bolsonaro] teve de fazer cinco emendas constitucionais para mudar a regra do teto para fazer os gastos caberem na regra.

Valor: Se o crescimento começar a surpreender negativamente, o risco fiscal fica mais latente?

Holland: A nossa situação atual parece contraditória. Porque, a gente olha a economia e temos boas notícias. Vemos o Mistério da Fazenda desejando muito ter boas entregas fiscais, tentando segurar o lado de gasto do resto do governo. O Haddad, hoje, é uma contenção, é uma âncora muito importante nesse processo. Mas, ao mesmo tempo, a qualquer início de frustração do crescimento e da arrecadação, a conta não vai fechar. E vamos entrar em um desespero muito grande. Prevejo que isso tende a ocorrer até o fim de 2026.