Por Anaïs Fernandes e Álvaro Fagundes
Sob o efeito da baixa taxa de fecundidade e de processos migratórios intensos, as cidades menores do Brasil são as que mais perdem população jovem. Levantamento do Valor a partir de dados do Censo 2022, do IBGE, mostra que a redução da população de zero a 14 anos em municípios de até 50 mil habitantes se dá a um ritmo de dois dígitos.
Na comparação com os dados do Censo de 2010, a queda é de 21% nas cidades com até 10 mil habitantes; de quase 20% nos municípios com 10 mil a 20 mil habitantes e de 15% em locais com 20 mil a 50 mil habitantes. Em Caatiba, cidade baiana de 6,2 mil moradores e que lidera a perda de jovens no país, a população com até 14 anos encolheu 62% desde 2010.
O Brasil inteiro está envelhecendo muito rapidamente, observa José Irineu Rangel Rigotti, professor do departamento de demografia e do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), ambos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “A característica desse envelhecimento é, justamente, a diminuição da população de crianças. Mas o desse decrescimento tem sido mais veloz nos municípios de menor população”, afirma.
No passado, lembra Rigotti, esses municípios pequenos, muitos deles de base rural, tinham uma natalidade (número de nascimentos, em relação à população) maior porque a fecundidade (número médio de filhos por mulher no período reprodutivo) também era maior. “Quando a fecundidade cai, ela atua no sentido de diminuir a natalidade”, explica o professor.
“As mulheres vão tendo cada vez menos filhos. É como se fosse uma locomotiva que precisa de combustível para andar. Se não tem nascimento, começa a reduzir o tamanho da população. E o impacto direto é na base da pirâmide etária”, diz José Marcos Pinto da Cunha, professor no departamento de demografia do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas (IFCH) e pesquisador do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo), ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ao desagregar a faixa etária de zero a 14 anos em grupos quinquenais (de cinco anos), Cunha observa que a queda entre 2000 e 2010 no Brasil concentrou-se nas crianças entre zero e quatro anos, cuja população reduziu 1,6%. Já entre 2010 e 2022, a perda maior, de 1,7%, se deu no grupo de 10 a 14 anos. “A hipótese da queda da taxa de fecundidade é o que pode explicar muito isso”, afirma Cunha.
Mas há outro componente importante, destaca Rigotti: a composição da população por sexo e idade. “Se, em uma determinada localidade, tenho muitas mulheres entrando no período reprodutivo, às vezes, mesmo com a fecundidade por mulher caindo, pode haver aumento dos nascimentos.”
“Se o número de crianças se reduz drasticamente, isso pode implicar o fechamento de escolas, sem que isso signifique que não haja crianças nas cidades”
— José Irineu Rangel Rigotti
Além da queda geral da fecundidade, porém, as cidades pequenas também precisam lidar com o fenômeno da migração, apontam os especialistas. “Desde os anos 1950, com a intensificação do processo de urbanização no Brasil, esses municípios perdem população. E era comum que mulheres jovens saíssem para trabalhar em grandes centros urbanos”, diz Rigotti. “Isso continuou, e a composição da população foi alterada nesses locais, que têm menos mulheres em período reprodutivo.”
Acontece, assim, “um envelhecimento muito intenso nesses municípios”, afirma Rigotti. “Não é só a diminuição da fecundidade, mas também as mulheres que teriam filhos saem e vão ter filhos em outros lugares, em cidades maiores.”
Tanto é assim que a perda de população jovem em cidades de porte intermediário é bem menor. A redução da população de zero a 14 anos em cidades de 100 mil a 500 mil habitantes, entre o Censo de 2022 e o de 2010, fica um pouco abaixo de 6%.
“Desde os anos 1990, esses municípios médios exercem papel de atrair população, enquanto as grandes cidades começaram a perder população. Essas cidades de porte intermediário receberam uma população jovem e têm mais mulheres em período reprodutivo. Por isso, a natalidade não cai em ritmo tão intenso”, afirma Rigotti.
O decréscimo de crianças volta a acelerar para dois dígitos (cerca de 16%), entre os dois censos, nas grandes aglomerações, com mais de 1 milhão de habitantes. Nesse caso, é a baixa taxa de fecundidade que exerce maior influência, segundo os especialistas.
“Sabemos que a queda da fecundidade tem relação com nível de educação, inserção no mercado de trabalho e, nos municípios maiores, isso é mais intenso”, afirma Cunha, da Unicamp.
“Nos grandes municípios, é muito provável que a fecundidade já esteja muito baixa, muito mais baixa do que a chamada taxa de reposição, que seria de 2,1 [filhos por mulher em idade reprodutiva]”, diz Rigotti, observando que os dados de fecundidade do novo Censo ainda não foram divulgados. “No Brasil, é praticamente certo que está em menos de 1,7, e, nas grandes cidades, deve ser ainda mais baixo”, estima.
Olhando à frente, Rigotti tem a avaliação de que a perda de população jovem nas cidades pequenas deve continuar, mas em ritmo menor. “A taxa de urbanização, por exemplo, já é altíssima, mais de 85%. E é provável que esses elementos que estamos vendo influenciar tendam a desacelerar, porque o patamar já está bem envelhecido”, afirma.
Algumas localidades do país, no entanto, ainda apresentam ritmo de urbanização acelerado, como capitais da região Norte, nota Rigotti. Nesses locais, a migração ainda pode ser intensa, impulsionando a redução da população infantil e o ritmo de envelhecimento nos municípios pequenos.
Os Estados do país que a idade mediana é inferior a 30 anos estão no Norte – Roraima é o mais jovem com 26 anos. Das 25 cidades com maior população até 14 anos, só uma – a 25ª – está fora da região Norte: Campinápolis, em Mato Grosso. A maior parcela é em Uiramutã, em Roraima, onde os jovens são 49,3% da população.
Esse deslocamento da população infantil gera uma série de desafios para municípios de todos os portes, segundo os especialistas.
“Nas grandes cidades da região Norte, por exemplo, você vai precisar de escolas para atender essa população. O atendimento entre 6 e 14 anos no Brasil já é muito alto, mas temos gargalos no ensino médio. Futuramente, mais serviços educacionais serão demandados”, afirma Rigotti, citando também a necessidade de políticas que deem conta da inclusão desses futuros jovens no mercado de trabalho. “Sabemos que a taxa de desemprego entre os jovens é maior.”
No sentido contrário, nas cidades menores, a redução da população infantil pode até ajudar a trazer alguma folga para o oferecimento de creches, outro gargalo no país, diz Rigotti. “Mas, se o número de crianças se reduz drasticamente, isso pode implicar o fechamento de escolas, sem que isso signifique que não haja crianças nas cidades. Como elas terão acesso à educação? Terão transporte adequado, caso precisem se deslocar para estudar?”, questiona.
Além disso, diz, o envelhecimento populacional mais acelerado pressiona os serviços de assistência social e saúde dos pequenos municípios. “Vai demandar serviços mais específicos e, inclusive, mais caros. Muitos desses municípios, no entanto, não estão equipados para atender essa população”, afirma Rigotti.
“Vai ser um período muito desafiador para as políticas públicas brasileiras e dos municípios nos serviços mais essenciais”, conclui o professor.