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Economistas falam em 'matemágica fiscal', 'gosto amargo' e 'baixa sensibilidade' do governo em revisão das contas públicas
Atualização para baixo no contingenciamento surpreendeu negativamente e pode piorar reação do mercado
23/09/2024
Valor Econômico

Por Anaïs Fernandes

 

A revisão bimestral do orçamento para 2024 apresentada ontem pelo governo surpreendeu negativamente economistas e deve pressionar os ativos domésticos no início da próxima semana.

No geral, a avaliação é que houve avanços na estimação de algumas receitas e certas despesas e o cumprimento da meta de resultado primário deste ano ainda está “ao alcance da mão”, mas o governo perdeu a oportunidade de realizar um bloqueio maior de despesas que tornasse a projeção de gastos mais crível, o que deixou uma impressão de piora entre analistas e deve exigir um bloqueio mais forte no último relatório do ano, previsto para 22 de novembro.

“Tem alguns pontos mais construtivos, mas, no geral, liquidamente, a surpresa foi um pouco pior”, afirma a economista Andrea Damico, fundadora e CEO da Buysidebrazil.

A contenção orçamentária total (bloqueio e contingenciamento) caiu de R$ 15 bilhões anunciados em julho para R$ 13,3 bilhões agora. O bloqueio é realizado quando despesas obrigatórias sobem mais do que o estimado pelo governo, e ele precisa cortar despesas discricionárias (não obrigatórias) para compensar. Já o contingenciamento de despesas ocorre quando há frustração nas receitas previstas para financiar gastos.

A expectativa dos economistas era de um bloqueio adicional em torno de R$ 5 bilhões, mas o governo anunciou R$ 2,1 bilhões. Para o contingenciamento, embora economistas não esperassem restrição adicional, já que as receitas performam bem, também não previam que os R$ 3,8 bilhões de julho fossem convertidos em zero.

Como o bloqueio adicional foi inferior à reversão do contingenciamento, o “esforço fiscal” total para 2024 foi afrouxado em R$ 1,7 bilhão, enquanto economistas e agentes do mercado financeiro esperavam um aumento entre R$ 5 bilhões e R$ 10 bilhões. O Santander, por exemplo, esperava um bloqueio de R$ 5 bilhões que, somado à contenção de R$ 15 bilhões de julho, levaria a R$ 20 bilhões no total.

“O bloqueio foi abaixo do esperado (R$ 5 bilhões), sendo que essa perspectiva já era considerando que o governo não faria o necessário (R$ 10 bilhões)”, afirma Rai Chicoli, economista-chefe da Citrino Gestão de Recursos.

Sobre o contingenciamento, Chicoli diz acreditar que o governo “deveria ter sido mais conservador” e, pelo menos, deixado o valor previsto.

“Reverter o contingenciamento em um momento em que as despesas ainda não estão devidamente ajustadas e a economia se mostra forte, enquanto o ciclo de ajuste de juros está apenas começando, revela uma baixa sensibilidade do planejador diante de uma economia desequilibrada. O fiscal continua expansionista, enquanto a política monetária tenta contrair”, afirma Débora Nogueira, economista-chefe da Tenax Capital.

Nos últimos dias, ela observa, os mercados locais já reagiram negativamente, inclusive antecipando uma contenção orçamentária menor. Ontem, a perspectiva de uma Selic mais elevada à frente e as preocupações do mercado em torno do fiscal levaram a um amplo aumento dos prêmios de risco, refletidos ao longo de toda a curva de juros, conforme mostrou reportagem do Valor Pro, o serviço em tempo real do Valor.

“A reação na segunda-feira deverá ser ainda mais negativa”, afirma Nogueira. “O que mais vai pesar é o bloqueio menor que o esperado e a liberação do contingenciamento. Acho que o mercado vai continuar estressando”, diz Chicoli.

Em evento na USP ontem, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, atribuiu a reação pior do mercado ao fato de a coletiva para explicar o relatório de revisão bimestral de despesas e receitas ter ficado para a segunda-feira. “Uma série de boatos começaram a circular, completamente improcedentes. Mas vamos ver que na segunda-feira as notícias são boas, vamos ver que a arrecadação continua vindo em compasso com as perspectivas da Receita [Federal], as despesas estão acomodadas no teto de gasto, como previsto”, afirmou à imprensa.

Questionado sobre a contenção total de R$ 15 bilhões do último relatório ter sido reduzida, Haddad disse que é “porque nós estamos performando melhor”. “Essa é que é a verdade. Todo mundo esperava, no começo do ano, um descontrole das contas, que não aconteceu. Apesar da desoneração, dos lobbies, apesar de tudo isso, nós estamos conseguindo repor aquilo que foi retirado do orçamento, com base nas regras fiscais vigentes”, afirmou.

Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da ARX Investimentos, diz que o governo está fazendo “matemágica fiscal” baseada em quatro vetores: antecipando dividendos de estatais, contando com uma estimativa “heróica” das medidas compensatórias para a desoneração da folha de pagamentos, tirando cada vez mais despesas do regramento fiscal e segurando gastos “na boca do caixa” para empoçar.

As despesas não sujeitas à meta – principalmente o socorro ao Rio Grande do Sul, mas também gastos para enfrentamento às queimadas e a quitação de precatórios – subiram de R$ 28,8 bilhões no relatório de julho para R$ 40,5 bilhões em setembro. “Ninguém questiona que são eventos extremos, mas, apesar disso, acho que fica um sabor um pouco mais amargo de constatar que tem ali uma parte significativa do déficit vindo de despesas fora do teto”, afirma Damico. “Esse é um ponto de desconforto”, acrescenta.

Medidas compensatórias para a desoneração da folha em torno de R$ 18 bilhões e mais cerca de R$ 4 bilhões com royalties da exploração de recursos naturais também ajudaram na “matemágica”, segundo Leal de Barros.

“O mercado vai reagir muito mal, e o estratagema de tentar enganar o mercado sempre dá errado, tem um custo enorme. Estamos revivendo os anos iniciais da Nova Matriz Econômica, temos uma nova velha NME”, diz, em referência à política econômica adotada na Presidência de Dilma Rousseff (PT). Ela combinava, entre outras coisas, juros baixos, desonerações e subsídios, mas economistas apontam a estratégia à época como um dos fatores responsáveis pela recessão posterior de 2014-2016.

Na visão do Santander, o governo está mirando a banda inferior da meta de resultado primário, já que a estimativa oficial, de déficit de R$ 28,3 bilhões, está apenas R$ 400 milhões abaixo do limite, que é de um déficit de 28,8 bilhões.

“No geral, foi uma surpresa negativa no resultado [do relatório bimestral de setembro]. Embora ainda vejamos uma chance considerável de atingir a meta neste ano, temos mais despesas não sujeitas ao limite de gastos, menor espaço para surpresas negativas e dependência de receitas extraordinárias”, afirma Ítalo Franca, economista do Santander, em comentário a clientes.

A meta para 2024 é de um resultado primário zerado, com tolerância para um déficit de até 0,25% do PIB.

Damico, da Buysidebrazil, calcula que o governo precisará de um bloqueio adicional em novembro de R$ 10 bilhões a R$ 15 bilhões, a depender do comportamento da arrecadação nos próximos meses, para chegar à banda inferior da meta. “Esperamos déficit de R$ 80 bilhões. O governo tem R$ 68,8 bilhões, considerando os R$ 40 bilhões fora da meta. Então, a gente identifica que vai ser necessário um esforço adicional fiscal no próximo relatório bimestral”, afirma Damico.

Receitas x despesas

No relatório de setembro, a estimativa oficial de receita do governo aumentou em R$ 4,4 bilhões, por causa da entrada de dividendos, do crescimento da estimativa para o Produto Interno Bruto (PIB) e de outras medidas, que mais do que compensaram o corte na expectativa de arrecadação com mudanças no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf).

A previsão de receita com dividendos subiu R$ 10,1 bilhões entre julho e setembro. Já a perspectiva para o PIB em 2024 foi atualizada de 2,5% para 3,2%. “A receita, de fato, tem um crescimento endógeno, justificado pela atividade econômica mais resiliente. A projeção de PIB para 2024 chegou a ser de 2% e já está em 3% em pouquíssimo tempo. A arrecadação precisa refletir isso, isso é uma melhora genuína”, afirma Damico, da Buysidebrazil.

O PIB maior amortece a queda de R$ 26 bilhões nas receitas administradas esperadas, nota Leal de Barros, da ARX. “O imposto inflacionário também ajuda a amortecer o recuo, via maior IPCA”, diz, em referência à projeção de inflação do governo, que foi de 3,9% para 4,25%.

A estimativa de arrecadação com o Carf, por sua vez, foi cortada de R$ 37 bilhões para apenas R$ 800 milhões, o que economistas consideraram que é uma projeção bem mais realista.

Ontem, Haddad disse que o governo atendeu “100%” da recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU) no que diz respeito à expectativa de receitas com o Carf.

“Em linhas gerais, a receita tem até mais notícias positivas do que negativas, ainda que tenha uma parcela da arrecadação muito atrelada a receitas extraordinárias”, afirma Damico.

Chicoli, da Citrino, reconhece uma melhora na composição dos números. “Na parte de receita, praticamente zeraram o Carf, mas a parte de concessões ainda me parece alta, apesar de terem reduzido também”, afirma. “Entraram algumas receitas da compensação da folha, que tenho dúvida do potencial arrecadatório, mas que, de qualquer forma, são mais factíveis do que o Carf.”

As receitas com concessões e permissões – em boa medida, renegociações de outorgas de ferrovias – foram reduzidas de R$ 24,6 bilhões no relatório de julho para R$ 20,7 bilhões em setembro. Na lei orçamentária de 2024, estavam em R$ 44,4 bilhões.

Do outro lado, a despesa total aumentou em R$ 11,8 bilhões, com os gastos previdenciários subindo em R$ 8,3 bilhões. “Ainda me parece insuficiente, mas houve uma melhora nessa conta”, diz Chicoli.

Nogueira, da Tenax, estima que a previsão de despesas com a Previdência ainda está subestimada em cerca de R$ 9 bilhões.

Damico diz que o reconhecimento do aumento das despesas obrigatórias é importante, mas acaba “consumindo” o espaço das discricionárias, o que “bate na credibilidade desse ajuste”, afirma.

“Por um lado, é positivo ver maior realismo nas projeções do Carf, na exclusão de receitas não garantidas e no ajuste das despesas. Por outro lado, ainda há subestimação de gastos e uma elevação de R$12 bilhões nas projeções de despesas fora da regra do teto”, diz Nogueira.

“Ao final, me parece que ainda temos receitas superestimadas, mas houve uma melhora na composição, e as despesas obrigatórias também continuam subestimadas, mas também houve um avanço”, conclui Chicoli.