Por Raphael Di Cunto, Marcelo Ribeiro, Beatriz Olivon, Guilherme Pimenta e Estevão Taiar
O envio da proposta de lei complementar de regulamentação, nessa quarta-feira (24), inaugura a fase dois da reforma tributária sobre consumo. O tamanho que o projeto deve ter, com quase 300 páginas e cerca de 500 artigos, não surpreende considerando que a Emenda Constitucional 132/2023 tem mais de 40 páginas. É só um indício da disputa feroz que teremos nos próximos meses em torno de cada um dos dispositivos.
A regulamentação deixará claro somente agora o custo real das exceções que viabilizaram o consenso político e a aprovação da emenda no ano passado. Vários setores querem um espaço nas exceções, mas quanto mais bens e serviços estiverem nela, maior a carga tributária para o restante.
As exceções não são poucas. Para começar, os tratamentos mais benéficos previstos na emenda para os novos tributos que passarão a valer a partir de 2026 se dividem em três regimes que são totalmente diferentes entre si e são estabelecidos em diferentes artigos da emenda da reforma.
São eles: o grupo do tratamento diferenciado, que terá redução de 30%, 60% ou 100% do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS); o grupo do tratamento favorecido, que inclui o Simples, regime especial para micro e pequenas empresas e Zona Franca de Manaus, e o do tratamento específico. Neste último, não necessariamente há redução de carga tributária, mas há regulação própria para cálculo e pagamento do tributo em razão de características consideradas específicas, como combustíveis e lubrificantes, serviços financeiros e hotelaria, entre outros.
Além disso, há a Cesta Básica Nacional de Alimentos, prevista em outro artigo da emenda totalmente diferente desses três regimes já citados. A tributação do que vai à mesa do brasileiro deve resultar nas mais ferrenhas disputas dentro no Congresso.
Só para dar uma ideia da complexidade do tema, basta dizer que a tributação mais benéfica dos alimentos encontra lugar em vários dispositivos da emenda da reforma. Além da cesta básica, que garante a alíquota zero de IBS e CBS, alimentos podem ainda ganhar lugar entre os que poderão estar no regime favorecido com redução de 60% ou 100% dos dois tributos.
É bom lembrar que no início do mês propostas de regulamentação de setores envolvidos no tema incluíram na cesta básica itens nada básicos como lagosta, salmão e caviar. Além disso, dentre os 13 projetos de lei complementar (PLPs) que foram apresentados sobre o tema na Câmara dos Deputados para regular pontos da emenda da reforma, um deles — PLP 35/2024, do deputado Pedro Lupion (PP-PR) — versa especificamente sobre cesta básica e seu texto permite também a inclusão de todos esses itens e mais foie gras, carne de coelho e bacalhau, itens no mínimo polêmicos.
Daniel Loria, diretor da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária, disse no evento Rumos, promovido pelo Valor no início deste mês, que a regulamentação é complexa e cada item dos tratamentos mais benéficos mereceram várias páginas de detalhamento.
Loria lembrou também que é preciso calibrar os tratamentos mais benéficos. Caso contrário, a alíquota de referência do IBS e da CBS sobem, aumentando a carga para quem não está nas exceções. Há ainda o princípio da neutralidade tributária, pelo qual a carga dos tributos que estão sendo estabelecidos precisa ser mantida, como proporção do PIB. Entram no cálculo da neutralidade, além do IBS e da CBS, o Imposto Seletivo (IS), que irá funcionar como uma cobrança adicional sobre bens e serviços com externalidades negativas para saúde e meio ambiente.
A reforma tributária sobre consumo vai substituir os atuais tributos federais PIS, Cofins, IPI, além do ICMS estadual e do ISS municipal pela CBS, federal, e pelo IBS que será gerido conjuntamente por Estados e municípios. O IPI, continuará a existir apenas para tributar produtos produzidos fora da Zona Franca de Manaus e que concorram com aqueles fabricados na região.
A carga tributária em questão é pesada. Os cinco tributos que serão eliminados foram responsáveis por 31,5% da carga tributária bruta total do país no ano passado, segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional. Importante lembrar que essa fatia era de 36% em 2021 e caiu em boa parte porque em 2022, por força de leis federais, os Estados reduziram a cobrança de ICMS em alguns setores.
O Imposto Seletivo, que também surge com a reforma e que ficou muito tempo deixado de lado nos debates mais acalorados em torno da emenda, é descrito como “bicho desconhecido” e tem sido tratado como um monstro. O tributo também será palco de várias disputas nos próximos meses. Nesse caso, entre setores que não querem que seus bens e serviços estejam entre os produtos tributados pelo IS.
O medo em relação ao IS vem da abrangência que o texto da reforma permite. As declarações de Bernard Appy, secretário extraordinário da Reforma Tributária, de que o imposto não terá fim arrecadatório e deverá funcionar mais como tributo extrafiscal, para desestimular consumo de bens e serviços com externalidades negativas, não foi suficiente para debelar desconfianças. A começar pelo fato de que a explicitação de extrafiscalidade do IS não entrou no texto final da emenda da reforma, embora tenha estado lá durante algumas etapas da sua tramitação.
O PLP 29/24, apresentado pelo deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP), mostra um pouco da desconfiança. O texto estabelece vários procedimentos prévios para a cobrança do IS, para atestar os efeitos negativos de bens e serviços à saúde e ao meio ambiente, estabelecendo também que a definição de alíquota deve seguir proporcionalidade em relação à prejudicialidade deles.
“Se aprovado conforme proposto, o PLP cria uma camisa de força para o Imposto Seletivo”, diz Júlio de Oliveira, sócio do Machado Associados, sobre o PLP de Bragança. Oliveira pondera também que o texto na verdade é uma reação ao texto “muito aberto” sobre o IS estabelecido pela reforma.
Durante a formatação final do texto, que ocorreu nos últimos meses, o governo optou por elaborar proposta em consenso com Estados e municípios, com menor participação dos setores. Segundo Loria, a proposta de regulamentação da reforma deve ser enviados com cerca de 90% de consenso com governos Estaduais e prefeituras. O Congresso será palco, então, nos próximos meses, da disputa dos 10% remanescentes no campo federativo, e praticamente de 100% das questões setoriais.
O envio da regulamentação havia sido prometido inicialmente para a semana passada, dia 15. Segundo Loria, a redação do texto estava sendo feita de forma cuidadosa, em parte para evitar ao máximo disputas judiciais adiante. Resta saber se, em meio a tantas disputas, o texto será preservado no processo legislativo.