Por José Eli da Veiga
Um esperançoso “Pacto pelo Futuro”, de 29 páginas, será concluído, neste fim de semana, na sede da ONU, em Nova York. Com dois notáveis acompanhamentos: um “Compacto”, de 17 páginas, sobre tecnologias digitais, e uma quase sucinta “Declaração sobre as Futuras Gerações”, de cinco páginas.
Por mais interesse que mereçam, será azucrinante a leitura das 207 cláusulas contidas nessas três altíssimas concentrações de sensatez e esperteza diplomáticas. Mesmo assim, talvez valha a pena fazer buscas com palavras-chave nos arquivos do site da “Cúpula sobre o Futuro”: www.un.org/en/summit-of-the-future
Não há muito risco em antecipar que dificilmente serão encontradas relevantes novidades em comparações com outros documentos já elaborados no âmbito das Nações Unidas. Este novo trio parece uma tentativa de consolidação das melhores aspirações.
Exemplo bem expressivo está na louvável ambição de se criar algum modo de governança global da inteligência artificial, o tema mais quente do “Compacto”. Nas pertinentes 20 cláusulas, não parece haver nada que tenha escapado à esplêndida “Recomendação sobre a Ética da IA”, formulada na Unesco, desde o fim de 2021.
Mais: se já é dificílimo alcançar governança global sobre pontos inerentes às esferas públicas das nações, ainda menos se pode esperar de eventual influência de acordos na ONU em assunto tão dependente de protagonismo do setor privado.
Pouco se pode esperar de eventual influência de acordos na ONU em IA, assunto tão dependente da ação do setor privado
Mesmo nos casos dos raros governos capacitados a pôr em prática as orientações da Unesco, é muito duvidoso que possam ter influência decisiva sobre as acirradas investidas das big techs.
Tudo isto remete à própria aposta em “governança global”, expressão que só começou a emergir no fim da década de 1980. Basicamente para designar atividades geradoras de instituições – regras do jogo -, que possam levar um mundo formado por Estados-nação a se governar sem dispor de governo central.
Por este prisma, muito mais interessante que o trio de diplomas a serem adotados na Cúpula deste fim de semana é a dúzia de perguntas que põem em pauta. Depois de indiscreto, mas suave, copidesque, seriam as seguintes:
- Com base na Carta das Nações Unidas e no direito internacional, como pode ser revigorada e aprimorada a cooperação multilateral para enfrentar as violações atuais à paz e à segurança internacionais, em um mundo cada vez mais interconectado e em contexto de tão graves conflitos entre Estados-membros?
- De que maneiras eles podem colaborar de forma menos ineficaz para fortalecer os mecanismos de cooperação internacional e promover a paz e a segurança em todo o mundo?
- Como a comunidade internacional pode garantir que o princípio de não causar dano seja respeitado na criação e no uso de novas tecnologias, ao mesmo tempo que impulsiona visões inovadoras e estruturas colaborativas para manter a segurança, aprimorar os esforços de edificação da paz, combater o discurso de ódio e o extremismo violento, as raízes do terrorismo?
- Como se pode promover maior interação e coesão entre as partes interessadas para garantir que políticas e ações sejam projetadas e beneficiem a todos, incluindo as gerações futuras?
- Como se pode promover ações eficazes e ambiciosas – perfiladas à Agenda 2030 e ao Acordo de Paris -, para garantir que as escolhas de hoje atendam as gerações atuais sem comprometer oportunidades de bem-estar para gerações futuras?
- Como as tecnologias digitais podem ser aprimoradas para promover o desenvolvimento sustentável de maneira equilibrada e inclusiva, principalmente diante de desafios como mudanças climáticas, conquista de resiliência, aumento da inclusão financeira e empoderamento econômico?
- De que maneiras a colaboração e as parcerias multissetoriais podem promover a capacitação e reforçar a cooperação tecnológica e científica para terminar com a exclusão digital entre os países e dentro deles?
- Como se pode garantir que a criação e o uso de novas tecnologias promovam um ambiente digital inclusivo, aberto, seguro e protegido no qual todos – especialmente mulheres e crianças – estejam protegidos contra danos on-line?
- Que planos inovadores e rotinas podem ser adotados para promover a solidariedade intergeracional na salvaguarda de razoável porvir para as gerações presentes e futuras?
- Quais as principais vulnerabilidades e desigualdades na atual arquitetura financeira internacional e como elas podem ser tratadas para garantir crescimento econômico equitativo, com estabilidade social e cuidado com a natureza?
- Como a arquitetura financeira internacional pode ser reformada para melhor apoiar o cumprimento da Agenda 2030 e seus ODS e para bem responder às diversas crises globais?
- Como as ações recentes e contínuas das instituições financeiras internacionais podem aumentar o seu impacto – assim como a própria transparência, responsabilidade e governança inclusiva – e como elas poderiam ser ainda mais aprofundadas?
A íntegra literal das 12 perguntas acima está no arquivo “Concept Notes for the Interactive Dialogues” (4 páginas), também no website da Cúpula.
José Eli da Veiga é professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP. www.zeeli.pro.br