Por Gabriel Roca e Victor Rezende
Em um ano no qual o Tesouro Nacional vem concentrando suas emissões em títulos atrelados à Selic, a dinâmica fiscal tem preocupado cada vez mais os participantes do mercado, no momento em que o Banco Central aperta adicionalmente a política monetária. Embora os agentes financeiros ressaltem que o colchão de liquidez segue em níveis bastante confortáveis, os riscos têm aumentado e levam o mercado a ver um custo adicional relevante para a gestão da dívida pública.
Diante das incertezas elevadas nos mercados domésticos e locais, o Tesouro se apoiou nas emissões de Letras Financeiras do Tesouro (LFTs) ao longo do ano. Do volume de dívida colocada no mercado em 2024, de aproximadamente R$ 1,13 trilhão, títulos indexados à Selic totalizaram 65% do montante (R$ 738,3 bilhões). Assim, no momento em que um ciclo de elevação de juros tem início, os agentes se mostram ainda mais cautelosos com o custo da dívida.
O estrategista de renda fixa da BGC Liquidez, Daniel Leal, fez alguns exercícios para ilustrar os impactos da piora da composição da dívida no custo de rolagem.
Utilizando o ponto médio da estimativa do Plano Anual de Financiamento (PAF) no início do ano – que previa uma banda entre 40% e 44% de participação de LFTs na dívida -, Leal assumiu que o percentual de títulos atrelados à Selic ficaria em 42% ao longo dos anos de 2024 e 2025. Já em um cenário atualizado, o profissional utilizou o que ele considera como a hipótese mais provável para a composição da dívida, com a parcela de LFTs alcançando 47% até o fim de 2024 e permanecendo nesse nível no próximo ano.
Nesse ambiente de piora da composição, o estrategista calculou a diferença do custo da dívida entre o cenário esperado no início do ano e o atual, que contemplam, em especial, trajetórias bastante diferentes nas expectativas para os rumos da Selic. Se, no início do ano, a perspectiva geral era de queda nos juros, agora o BC já deu início a um ciclo de aperto e o mercado espera um aumento no grau de restrição à frente.
“Esse impacto de estar com uma participação maior de LFTs na dívida geraria um custo adicional de R$ 17 bilhões em 2024 – os números são parecidos quando usamos a precificação de mercado ou o Focus. Já em 2025, pelo que está precificado na curva de juros, o custo adicional seria de R$ 42,5 bilhões e, pelas estimativas do Focus, de R$ 38,5 bilhões”, calcula.
“É importante o exercício para entender como uma participação elevada de LFTs na dívida pode acabar elevando o seu custo. E também mostra a necessidade do Tesouro de aproveitar melhor as janelas de oportunidade que o mercado dá. No início do ano, o Tesouro poderia ter emitido mais títulos prefixados, já que a curva tinha taxas muito mais baixas que agora. Provavelmente havia algum otimismo que os juros seriam mais baixos do que são. Mas quebramos essa expectativa de queda da Selic para novas altas. Não à toa, a composição ótima da dívida é de 25% em LFTs e já estamos indo para o dobro disso”, enfatiza Leal.
Na visão do estrategista, o Tesouro perdeu boas oportunidades de emitir mais títulos prefixados e Notas do Tesouro Nacional série B (NTN-Bs), papéis atrelados à inflação. Isso reduziria a parcela atrelada à Selic e traria mais previsibilidade, uma vez que parte das notas é prefixada. “Na terça-feira [no leilão semanal], tinha demanda no mercado e ele acabou fazendo um lote bastante reduzido de NTN-Bs. Acho que o Tesouro precisa repensar um pouco a sua atuação para não ficar tão dependente das LFTs. Se o cenário otimista não se realiza, que é o que eles tinham no início do ano, acaba dificultando muito a gestão da dívida para os próximos anos. O Tesouro deveria estar bastante alerta”, afirma.
O cálculo, segundo Leal, é apenas um exercício, já que uma elevação na Selic tem impacto no custo da dívida como um todo, e não somente nos papéis atrelados ao juro básico. Segundo as estimativas do estrategista, ao se levar em conta as estimativas do Focus para os juros no início do ano e atualmente, o custo adicional para a dívida em 2024 seria de R$ 47 bilhões e, em 2025, totalizaria R$ 160 bilhões. Ao se considerar a precificação da curva de juros, que contempla uma Selic de até 12,75%, o valor adicional seria de R$ 66 bilhões em 2024 e de R$ 210 bilhões no ano que vem.
“É uma tendência preocupante, mas, no fundo, o que mais importa é que o juro real está muito mais elevado. Mesmo que a estratégia seja continuar emitindo mais dívida prefixada e indexada ao IPCA, a carga de juros não ficaria menor, até porque o governo teria de pagar muito mais prêmio para colocar esses instrumentos ”, observa Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro e diretor da Oriz Partners.
O executivo, nesse sentido, acredita que, no contexto atual, a utilização das LFTs ajuda a servir como um “paliativo”, algo que não resolve a situação, mas que, ainda, assim, não é o grande problema na condução da dívida pelo Tesouro. “O problema está na trajetória não sustentável de elevação dos gastos obrigatórios e da dívida pública, na ausência de reformas estruturais”, enfatiza Kawall.
Há, nesse sentido, uma preocupação crescente no mercado sobre o estado das contas públicas, diante do apontamento feito por Kawall de que o juro real segue em níveis elevados, e em um momento no qual há bastante volatilidade.
No fim da semana passada e na segunda-feira, chamou atenção o fato de os juros curtos, as taxas longas, o dólar e a inflação “implícita” estarem em alta, o que levou alguns investidores a observarem que os preços dos ativos estavam negociando como se estivessem em um ambiente de dominância fiscal. O assunto foi tema de debates, na última sexta-feira (20), na PUC-Rio. Economistas que estiveram no seminário da Casa das Garças notam que os presentes fizeram alertas sobre a condução das contas públicas, mas não compartilham da ideia de que o Brasil está em um cenário de dominância fiscal agora.
“Por mais que a despesa como proporção do PIB esteja estável, a dívida deve continuar subindo. As projeções para 2030 estão batendo nos 93% a 95% do PIB. E esse ciclo de política monetária, com uma dívida ainda mais indexada à Selic, acaba trazendo de volta aquela preocupação sobre dominância fiscal. Não é um debate para agora, mas é preciso de medidas para evitar que cheguemos a isso”, afirma o sócio e gestor da Novus Capital, Luiz Eduardo Portella.
Na visão do gestor, é um momento ruim para o Brasil, especialmente devido aos anúncios recentes de medidas fiscais que buscavam driblar as restrições do arcabouço fiscal. “Não é mais uma incerteza sobre o arcabouço. Passou a ser uma visão negativa sobre uma possível volta de expedientes de contabilidade criativa. Faz com que a gente fique em uma espiral um pouco negativa. Essa janela positiva no cenário internacional, de cortes de juros nos Estados Unidos, pode acabar se fechando e podemos ficar em um cenário ruim.”
A Novus mantém posições “tomadas” em juros nominais (aposta na alta das taxas), de acordo com Portella, ao avaliar que o mercado deve pedir prêmios ainda maiores no mercado de juros. A maior parte do risco da gestora, porém, está alocada no exterior, mas há posições vendidas (aposta na queda) em bolsa e em dólar contra o real.