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Finanças Públicas
Política fiscal atravessa teste inicial, mas 2024 promete mais incertezas
Debate em ano de eleição municipal deve envolver não só meta de zerar déficit, mas também novo arcabouço
26/12/2023
Valor Econômico

Por Lu Aiko Otta e Estevão Taiar

 

Principal ponto de atenção do mercado durante o ano, a política fiscal seguirá no radar como importante fator de incerteza em 2024. Sua condução foi marcada pela relação cooperativa, mas tensa entre Executivo e Congresso. Em alguns casos, como na decisão que permitiu o pagamento de precatórios via crédito extraordinário e fora das regras fiscais, dependeu do Judiciário. Muitos momentos demandaram o envolvimento do ministro Fernando Haddad (Fazenda) para que o plano, cujo alicerce é o aumento das receitas, conseguisse avançar. Tudo isso em meio a críticas de alas desenvolvimentistas do governo e do PT.

No ano que vem, o debate deve se dar em torno não só da meta de zerar o déficit público, mas também da sustentabilidade do novo arcabouço fiscal. O pano de fundo é justamente a pressão por mais gastos em período eleitoral e a resistência do governo em patrocinar reformas que visem à redução de despesas.

A gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) iniciou 2023 com expansão nas despesas de R$ 145 bilhões, amparada pela chamada PEC da Transição. Logo no dia 12 de janeiro, o ministro da Fazenda lançou um pacote de ajustes que buscou reduzir as críticas do mercado de que o governo não tinha um plano para essa área, além de acabar com o teto de gastos. Cobrava-se, pelo menos, as diretrizes do novo arcabouço fiscal.

No papel, as medidas seriam suficientes para zerar o déficit neste ano. Ao anunciar as propostas, no entanto, Haddad calibrou expectativas e explicou que esperava cortar pela metade o resultado negativo previsto para o ano, que pode ser de até R$ 228,1 bilhões. Na sexta-feira (22), admitiu que esse objetivo não será atingido. As contas deverão fechar com déficit da ordem de R$ 130 bilhões. É um dado melhor que as projeções oficiais, que apontam para resultado negativo de R$ 177,4 bilhões (nas contas do Tesouro) ou R$ 203,4 bilhões (nos cálculos do Banco Central).

A performance abaixo do esperado desse plano e de complementos lançados ao longo de 2023 colocam no horizonte o anúncio de mais medidas, refletindo o esforço da área econômica de chegar ao equilíbrio fiscal no ano que vem. Tanto que Haddad espera anunciar um conjunto de ações nesta terça-feira (26). Nos bastidores, há um repertório de propostas a ser utilizado conforme a necessidade.

Encarado com ceticismo pelo mercado, o objetivo de zerar o déficit em 2024, fixado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), seguirá sob bombardeio e é possível que essa meta seja revista em março. Esse foi o calendário acordado entre Lula e Haddad, após o presidente afirmar que um pequeno déficit não seria problema.

Os sinais dúbios do presidente, que oscila entre o apoio à estratégia de Haddad e os apelos da ala política por mais gastos, deverão seguir no centro das atenções do mercado em 2024. Será um ano de eleições municipais.

Ao mesmo tempo, o arcabouço fiscal passará por duro teste de consistência. Na visão de especialistas ouvidos pelo Valor, a nova regra fiscal será incapaz de reduzir a dívida pública nos próximos anos e não sobreviverá se não forem revistas as regras de correção das despesas com saúde e educação. E esse ponto preocupa até mais que a discussão sobre a meta.

O arcabouço permite que as despesas cresçam ao ritmo de 70% do aumento da arrecadação. Enquanto os gastos mínimos com saúde e educação evoluem a 100% da receita, e o salário mínimo cresce acima da inflação. Na avaliação de Fabio Giambiagi, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), “há uma incompatibilidade intrínseca” entre o arcabouço e as regras para esses gastos obrigatórios. “Ou essas regras mudam ou o arcabouço morre”, diz. “Uma coisa não bate com a outra.”

O economista-chefe da AZ Quest, Alexandre Manoel, também aponta para essa incompatibilidade. “Se as regras para saúde e educação não forem alteradas, todas as demais despesas ficarão deprimidas”, comenta. Ele considera “inevitável” que essas regras voltem a ser discutidas no ano que vem, na época da elaboração da proposta orçamentária de 2025. Já com relação ao salário mínimo, promessa de campanha, uma revisão não ocorreria no atual mandato de Lula, avalia.

A economista-chefe da SulAmérica Investimentos, Natalie Victal, chama atenção para o que considera uma incompatibilidade entre as demandas políticas e as regras do arcabouço fiscal. Giambiagi vai na mesma linha e acrescenta que o cenário do ano que vem deve intensificar essa tensão.

“Se com o arcabouço não valendo totalmente, os gastos voando e as despesas discricionárias fortes o PT já faz essa oposição à política econômica do Haddad, imagine em 2025 e 2026, com as eleições presidenciais se aproximando e os gastos discricionários caindo”, diz Giambiagi, referindo-se à resolução aprovada pelo PT no início do mês, segundo a qual “o Brasil precisa se libertar urgentemente” do “austericídio fiscal”.

Se a preocupação com o arcabouço levar a uma revisão de gastos, o cenário marcará uma tentativa de mudança na composição do ajuste fiscal. Até agora, a busca do equilíbrio orçamentário foi baseada majoritariamente em medidas que elevam as receitas e pouco foi feito pelo das despesas. Nos bastidores, Haddad tem pontuado que o esforço do ajuste não foi dividido igualmente dentro da equipe econômica, sugerindo que outras pastas poderiam ter contribuído mais nesse sentido.

Em janeiro, foi anunciada uma revisão de contratos do governo federal que poderia render uma economia de R$ 25 bilhões. O resultado ficou bem abaixo disso, informou fonte da área econômica. O Valor questionou o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos sobre os resultados, mas não obteve resposta até a conclusão desta edição.

Na sexta (22), a pasta anunciou que proporá novo reajuste para servidores, de 9%, em parcelas a serem pagas em 2025 e 2026. Em 2024, o auxílio-alimentação receberá aumento de 52%.

No Ministério do Planejamento, um conjunto de políticas públicas foi avaliado para que eventuais contingenciamentos de gastos em 2024 sejam decididos sobre uma base sólida de informações. Neste ano, foram bloqueados R$ 5 bilhões do Orçamento. A execução, porém, está abaixo do autorizado. A estimativa dos técnicos é que haja R$ 32 bilhões em recursos disponíveis que os ministérios não conseguiram gastar – quantia que poderá diminuir o déficit primário previsto pelo governo.

Incomodado com a falta de sinais de ajuste pelo lado das despesas, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tem sinalizado com a possibilidade de impulsionar a reforma administrativa. O projeto encaminhado na gestão de Jair Bolsonaro (PL) altera a Constituição para acabar com a estabilidade dos servidores públicos, mas o atual governo não concorda com essa proposta.

Haddad começou o ano sob pressão. Lula não havia concordado com a volta da tributação federal sobre combustíveis, que era parte do plano de ajuste de curto prazo. Logo em seguida, Lula investiu contra o presidente do BC, Roberto Campos Neto. Defendeu a elevação da meta de inflação, sob a tese que isso ajudaria a cortar mais rapidamente os juros. Foi na direção oposta à defendida por Haddad, para quem o avanço do ajuste fiscal abriria o espaço para a redução do custo de financiamento.

Aos poucos, o ministro reverteu o início de ano ruim. A tributação dos combustíveis voltou em março. A Câmara aprovou o arcabouço fiscal em maio e a reforma tributária em julho e dezembro; e votou também o projeto que devolve ao governo o voto de desempate nas disputas entre fisco e contribuinte no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Assim, Haddad terminou o primeiro semestre como grande vencedor.

Porém, na mesma época, o cenário externo deteriorou-se. Havia sinais de que os EUA manteriam juros elevados por mais tempo, o que poderia limitar a flexibilização da taxa também aqui no Brasil. A guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas trouxe preocupação com possíveis impactos no preço do petróleo. Além disso, os questionamentos quanto a um ajuste fiscal factível aumentaram.

Por volta de setembro, Haddad confidenciava nos bastidores que não enfrentar um segundo semestre com tantas dificuldades. Havia, no seu time, um inconformismo com o fato de o BC ter reduzido a taxa Selic em apenas um ponto percentual até então, apesar do avanço da agenda legislativa.

Em outubro, Haddad enfrentou nova turbulência. Lula disse a jornalistas que dificilmente seria cumprida a meta de déficit zero. A declaração foi vista como um aceno à ala que queria gastar mais, mas o ministro relativiza: a afirmação, diz, foi feita depois de uma conversa na qual ele informou ao presidente que as compensações tributárias estavam num ritmo acima do esperado pelo governo.

“O presidente fez aquela manifestação como se quisesse flexibilizar [a meta], mas estava diante de um fato novo”, contou Haddad. Naquela ocasião, o ministro pediu tempo para adotar medidas.

As receitas também não reagiram como o esperado pelo governo por ao menos dois fatores. Esperava-se obter R$ 50 bilhões neste ano com a volta do voto de qualidade no Carf. No entanto, a medida só foi votada pelo Senado em setembro. A expectativa era obter essa receita neste ano, mas os recursos só deverão ingressar em 2024. No ano que vem, são esperados R$ 97,8 bilhões.

Outras propostas renderam menos do que o esperado. Esperava-se, por exemplo, ingresso de R$ 20 bilhões com o programa Litígio Zero, no qual os contribuintes regularizariam voluntariamente sua situação no fisco. Segundo dados preliminares, foram recolhidos cerca de R$ 6 bilhões.

O governo ainda se deparou com reduções na receita que não estavam no radar. A principal delas, a perda estimada de R$ 70 bilhões nas receitas do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) neste ano, foi provocada pelo impacto de benefícios fiscais estaduais na base de cálculo desses tributos federais. O governo tenta frear esses efeitos com a medida provisória 1.185, conhecida como MP das Subvenções, aprovada na quarta-feira (20).

Outra surpresa negativa ficou com o crescimento de 13% nas compensações tributárias, que somaram R$ 207,4 bilhões até outubro. São descontos que os contribuintes fazem nos tributos a pagar, em razão de cobranças indevidas feitas pela Receita.

Esses dois últimos pontos, aliás, seguem no radar para 2024. No caso das compensações, estima-se que ainda haja estoque de R$ 150 bilhões, considerado pela equipe econômica o principal fator de incerteza em 2024. Já a MP das Subvenções precisou ser desidratada nas negociações com o Congresso – o que também ocorreu com as modificações nas regras de dedução dos Juros sobre o Capital Próprio (JCP). A regulamentação das apostas on-line, por sua vez, deverá render mais recursos que o esperado: R$ 12 bilhões, ante cerca de R$ 700 milhões na estimativa inicial. A aprovação desta proposta só ocorreu na reta final do ano.

Nos cálculos da SulAmérica, o governo precisa de superávit entre 1,5% e 2% do Produto Interno Bruto (PIB) para estabilizar a dívida. Mas Victal, a economista-chefe, lembra que as metas de resultado primário estabelecidas pelo arcabouço “não chegam a isso nem no fim do mandato” de Lula. Ela calcula que a dívida bruta do governo geral subirá de 75% do PIB em 2023 para 84% do PIB no fim de 2026.

O que dá “mais algum tempo para arrumarmos a casa” é, segundo a economista, a melhora recente da conjuntura externa – reflexo principalmente das projeções de trajetória de juros menos pressionada nos EUA. Mesmo assim, ela calcula déficit primário de R$ 90 bilhões (0,8% do PIB) para 2024, ante a meta oficial de zero, com intervalo de tolerância de 0,25 ponto do PIB para cima ou para baixo.

Victal ainda lembra que os R$ 95 bilhões de precatórios a serem pagos, embora não entrem formalmente no cálculo de resultado primário, também elevarão a dívida pública neste ano ou no próximo.

Após conseguir aprovar as medidas para fortalecer o ajuste, Haddad avalia que há entre o governo e o mercado uma discussão quanto ao ritmo do ajuste. O superávit, diz, está contratado pelo arcabouço e virá. O debate é “quando”. Todo o esforço do governo, explica, é antecipar o ajuste. Esta semana, com novas medidas sendo anunciadas, é exemplo dessa estratégia. Mas só o tempo dirá quem está certo.