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Por que os decretos de Lula sobre saneamento geram apreensão no mercado
Mudanças trazidas pelos decretos de hoje oferecem um bote de salvação para diversas empresas estatais que desrespeitaram prazos anteriores do novo marco legal e colocam princípios da lei em xeque
06/04/2023
CNN

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou nesta quarta-feira (5), em solenidade com governadores no Palácio do Planalto, decretos que flexibilizam o marco legal do saneamento básico.

A legislação, sancionada em 2020, abriu caminho para maior presença da iniciativa privada na prestação dos serviços de água e esgoto. Em menos de três anos, houve 21 leilões de concessão no setor, que abrangem 244 municípios e resultaram em investimentos contratados de R$ 82 bilhões.

No entanto, quase metade da população brasileira ainda não tem acesso a esgoto tratado e mais de cinco mil piscinas olímpicas de dejetos são despejados in natura, por dia, nos rios e mares do país.

As mudanças trazidas pelos decretos de hoje estão sendo recebidas com ceticismo por investidores privados. Elas oferecem um bote de salvação para diversas empresas estatais que desrespeitaram prazos anteriores do novo marco legal e colocam princípios da lei em xeque.

Capacidade econômica das estatais

O marco legal estipula o ano de 2033 para a universalização dos serviços de água e esgoto — 99% de abastecimento de água potável e 90% de tratamento de esgoto.As detentoras dos atuais contratos de prestação de serviços precisavam comprovar, até 31 de dezembro de 2021, que tinham capacidade econômico-financeira para enfrentar tal desafio e de fato realizar os investimentos necessários.

Muitas companhias estaduais de água e esgoto sequer enviaram documentação para a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). É o caso das estatais em Estados como Acre, Maranhão, Piauí, Roraima e Tocantins.

Por terem descumprido os prazos, elas estavam em situação irregular. Poderia haver troca de operador dos serviços, com uma licitação para conceder água e esgoto.

Agora, as companhias ganham uma nova oportunidade de demonstrar capacidade para a execução dos investimentos. Se já não fizeram isso no passado recente, há poucos motivos para acreditar que desta vez cumprirão os requisitos.

Prazo para regionalização

Uma forma encontrada pelo novo marco do saneamento para estimular concessões e atrair recursos privados é a regionalização dos serviços.

Municípios mais rentáveis, do ponto de vista econômico, formam blocos regionais (consórcios) junto com cidades menores, com baixa viabilidade comercial. É o que se chama, no mercado, de um modelo “filé com osso”.

A lei previa a formação dos blocos até 31 de março de 2023. Isso requeria esforço das prefeituras (titulares do serviços), bem como dos governos estaduais e assembleias legislativas (para propor e aprovar os blocos de concessão).

O prazo foi perdido em 2.098 municípios do país, que reúnem 65,8 milhões de habitantes. A partir de abril, eles ficaram impedidos de receber recursos federais na área de saneamento — seja Orçamento Geral da União (OGU), BNDES ou FGTS.

Os decretos de hoje esticam esse prazo até 31 de dezembro de 2025. Haverá atraso na regionalização do saneamento. Com menos tempo para alcançar as metas de universalizar os serviços até 2033, a dificuldade será maior.

Muitos especialistas temem que isso prepare o terreno para uma revisão futuras das próprias metas.

Contratos diretos

Uma das principais inovações do marco foi vedar novos contratos de programa, assinados diretamente entre municípios e companhias estaduais de saneamento, sem licitação. A partir de 2020, contratos de concessão passaram a exigir concorrência em igualdade de condições com o setor privado.

Algumas capitais, como João Pessoa, operavam os serviços de saneamento em caráter precário e sem amparo contratual. Pela nova lei, deveriam licitar os serviços. A Paraíba, no entanto, abriu uma polêmica.

João Pessoa foi considerada uma “microrregião” (para se enquadrar no critério de regionalização dos serviços) e encontrou-se uma brecha legal para a empresa estadual (Cagepa) prestar os serviços diretamente, já que o Estado é parte integrante da microrregião.

A Abcon (associação das concessionárias privadas) questiona esse arranjo da Paraíba no Supremo Tribunal Federal (STF) e vê risco para o modelo como um todo, se a iniciativa for copiada.

Uma das alterações mais controversas nos decretos de hoje é a “possibilidade de prestação de serviços pela empresa estadual em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões”, o pode validar o modelo adotado na Paraíba.

Limite para PPPs

Havia um limite de 25% das receitas de uma companhia de água e esgoto para contratos de parceria público-privada (PPP).

A ideia era não ter sobreposição de custos administrativos.Os decretos liberam essa amarra. Podem destravar novas PPPs e mais investimento. Mas também podem transferir responsabilidades para o setor privado, com as PPPs, sem estatais ineficientes sejam privatizadas.

O risco é manter loteamento político, altos salários em diretorias e gerências, custos maiores para a população. Por que não uma concessão pura e simples?

Leilões por menor tarifa, não por maior outorga

Em tese, um dos grandes avanços dos novos decretos. Se um governo estadual ou municipal vai conceder os serviços de saneamento, que seja por menor tarifa para os usuários finais, e não tendo como critério o maior valor de outorga no leilão.

O perigo está nos incentivos — ou na falta de incentivos — para prefeitos e governadores. Algumas lideranças políticas só se mexem quando veem possibilidade de arrecadação. É possível combinar as duas coisas.

O Amapá, que leiloou os serviços de água e agosto dos seus 16 municípios em 2021, conseguiu desconto de 20% sobre as tarifas de referência e obteve outorga de R$ 930 milhões.

Em Alagoas, o ex-governador Renan Filho destinou o dinheiro da outorga para as prefeituras. Os municípios, que são titulares do serviço de saneamento, se sentiram motivados a aderir aos blocos de concessão desenhados pelo Estado. Sem isso, não teria havido concessão de água e esgoto.