A criação do Comitê Gestor (CG) do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), prevista no Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024, foi recebida com elogios e críticas pelos especialistas ouvidos na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) em audiência pública nesta quarta-feira (2). Debatedores salientaram as vantagens da unificação de decisões sobre os novos tributos estabelecidos pela reforma tributária instituída pela Emenda Constitucional 132, mas o poder do CG também foi considerado exagerado.
O PLP 108/2024, que está em fase final de tramitação na Câmara dos Deputados e será enviado ao exame do Senado, é o segundo projeto destinado a regulamentar a reforma tributária (o primeiro é o PLP 68/2024, que regulamenta as mudanças nas regras para a cobrança de impostos sobre o consumo e é tema de um ciclo de debates no colegiado). Além de instituir o Comitê Gestor do IBS, o PLP 108/2024 também trata da transição do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para o IBS; define a distribuição dos valores do novo tributo para os entes federados; e altera as normas do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).
Fundos de pensão
Presidente da Associação Brasileira de Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp), Jarbas de Biagi cobrou ajustes nas novas regras para o ITCMD. Ele salientou que, de acordo com o projeto, não incidiria ITCMD sobre os planos de Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL), mas sim sobre os montantes em regime de capitalização dos fundos de pensão — situação que prejudica os fundos de pensão em face dos planos oferecidos pelos grandes conglomerados financeiros. Biagi teme que a pessoa que recebe o benefício de previdência complementar sofra a incidência de tributação cumulativa de ITCMD e de Imposto de Renda.
— Nos termos do que foi debatido [na Câmara], a gente entende que pode haver uma confusão. […] A gente tem esperança de colocar isso em sintonia fina […], de forma bem transparente.
Marcelo Rocha, consultor tributário do Grupo de Estudos Tributários Aplicados (Getap), manifestou o apoio da entidade à unificação do contencioso do IBS e da CBS, mas o projeto de regulamentação expõe o contribuinte a fiscalizações cruzadas entre diferentes entes federativos.
— Isso vai gerar uma complexidade, na nossa visão, que é incompatível com o que foi perquirido pela emenda constitucional.
Para Marcelo Rocha, o texto também permite o potencial de cobrança de multas acima de 100%, situação que poderá ter que ser analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ele defendeu que as regras do contencioso no IBS e na CBS deveriam espelhar as vigentes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) de modo a assegurar processos mais céleres.
Interferências políticas
Doutora em direito tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Susy Gomes Hoffmann criticou o modelo de CG, que considera vulnerável a interferências políticas. Argumentando que o fato gerador do IBS e da CBS é o mesmo, ela considera que os dois tributos deveriam ter administração compartilhada com fiscalização unificada, evitando múltiplas instâncias de julgamento em estados e municípios.
— Eu não quero olhar para o passado. Quero olhar para o que é melhor para o futuro, e para o Brasil que nós queremos, uma única instância será muito melhor.
Felipe Salto, ex-diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) e economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, concordou com Susy Hoffmann ao considerar “muito preocupante” o CG, que considera contrário ao pacto federativo. Segundo o projeto, o comitê centralizará a arrecadação, a partilha dos recursos, a devolução de créditos, o gerenciamento de conflitos e a jurisprudência dos autos de infração, ressaltou Salto.
— Os formuladores desta reforma deveriam ter bebido muito mais na fonte dos juristas do que na fonte de nós, economistas, para que resultados como esse, do CG, não tivessem acontecido.
Por sua vez, Melissa Castello, procuradora da Fazenda do Rio Grande do Sul, classificou o CG como uma ferramenta de segurança jurídica que corresponde à demanda dos contribuintes. Ela concordou que a lei poderia ter previsto um contencioso administrativo único, mas a decisão do legislador de definir IBS e CBS separados preserva aos estados e municípios manter seus próprios contenciosos — no entanto, o Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias deverá fornecer uma contribuição decisiva.
— Isso assegura previsibilidade e alinhamento com a decisão dos tribunais superiores. Ao fim e ao cabo, a gente pode ter muita dificuldade em tribunais administrativos quando eles se afastam da orientação dos tribunais jurisdicionais, e aqui a gente tem um grande avanço no projeto de lei que foi feito dentro da Câmara.
‘Bom contribuinte’
O presidente da Federação Nacional dos Fiscos Estaduais e do Distrito Federal (Fenafisco), Francelino Valença, elogiou a reforma tributária por defender o “bom contribuinte”, mas disse estranhar a possibilidade de ingerência, no CG, de procuradores dos estados — que podem advogar paralelamente às suas carreiras. Fábio Macêdo, presidente da Federação Nacional dos Auditores e Fiscais de Tributos Municipais (Fenafim), criticou os critérios de partilha de tributos durante o período de transição, alertando que muitos municípios perderão receita.
Felipe Kertesz Renault, diretor da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), apoiou a necessidade de simplificação e unificação do contencioso como forma de enfrentamento dos custos da burocracia e do acúmulo de processos, mas atacou como “gravemente incoerente” a possibilidade de impedimento do controle de legalidade por parte do julgador. Geraldo da Silva Datas, auditor fiscal estadual e presidente do Conselho de Contribuintes do Estado de Minas Gerais (Comsefaz), classificou o PLP 108/2024 como essencial para garantir a “higidez orçamentária” de estados e municípios e afastou a possibilidade de interferência política no CG.
Transição
Representando o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), Fellipe Matos Guerra disse temer uma interpretação “malabarística” da incidência de ITCMD sobre a distribuição desproporcional de lucros e apontou que faltam mecanismos no PLP 108/2024 para resolução de impactos da transição de tributos. Ana Claudia Borges de Oliveira, presidente da Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf), criticou a interpretação do projeto sobre a natureza do contencioso administrativo. Ela questionou os custos do CG e considerou que o Carf está capacitado a julgar o IBS sem interferência de outro conselho.
Também contrário ao poder excessivo do CG, Eduardo Salusse, presidente do Movimento de Defesa da Advocacia, observou trechos do projeto que tendem a “amordaçar” agentes públicos investidos de poder de julgamento. Ele disse prever maciça judicialização da parte dos contribuintes. Fernando Mobelli, gerente do Programa de Regulamentação da Reforma Tributária do Consumo, elogiou os fundamentos da reforma tributária, que considera simplificar o processo de arrecadação e reduzir sonegação e fraudes, e também salientou a natureza técnica do CG.
Reforma administrativa
Na presidência da audiência pública, o senador Izalci Lucas (PL-DF) repercutiu as previsões dos debatedores sobre aumento da carga tributária e perdas para entes federados, avaliando não saber “quem é que está ganhando nisso aí”.
— A gente precisava, antes de votar essa matéria, discutir qual é o tamanho do Estado que a gente quer: reforma administrativa, tamanho do Estado, pacto federativo. Mas, no Brasil, nem sempre a gente começa pelo caminho certo.