Por Lu Aiko Otta
Em meio à refrega travada pelo governo para ajustar as contas públicas primordialmente pela via do aumento das receitas, circula no mercado o receio que o Imposto Seletivo, criado na reforma tributária aprovada em 2023, venha a ser utilizado como um reforço da arrecadação. É um receio infundado, segundo afirmou fonte da área econômica à coluna.
Esse temor surge num contexto de gastos crescentes por parte do governo, apontou a diretora de macroeconomia do banco Santander, Ana Paula Vescovi, no evento “Caminhos do Brasil”, promovido por Valor, “O Globo” e rádio CBN. Num quadro assim, os impostos são os grandes financiadores, observou.
Embora a Emenda Constitucional (EC) 132, que contém a reforma, traga garantias de que a carga dos novos tributos sobre o consumo, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) será igual à dos tributos que estão substituindo, Vescovi questiona até que ponto o Seletivo não pode ser uma brecha para financiar atividades do governo.
O Seletivo é hoje a maior fonte de incerteza e especulação em relação à reforma tributária, relatou o professor titular de direito financeiro da Universidade de São Paulo (USP) Heleno Torres no mesmo evento. Não há certezas em relação a ele, afirmou.
O risco de ser convertido em um tributo arrecadatório nem é a principal dúvida em relação ao Seletivo. A maior incerteza está na definição do que são “bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente”, cuja comercialização ou importação estará sujeita a esse tributo. Até água em excesso pode fazer mal à saúde, argumentou o professor. E E haverá quem diga que uma dose de vinho faz bem, completou Vescovi.
Essa definição estará em uma proposta de lei complementar que o governo pretende encaminhar ao Congresso em meados deste mês. As alíquotas do Seletivo, conforme a EC 132, serão fixadas em lei ordinária.
Como o Imposto Seletivo não existe no Brasil, sua chegada gera o “medo do desconhecido”, avaliou à coluna o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Breno Vasconcelos, sócio do escritório Mannrich e Vasconcelos.
Existe, porém, um padrão estabelecido para esse tributo ao redor do mundo. É cobrado sobre bebidas alcoólicas, tabaco e, em alguns países, combustíveis fósseis. Por isso, é chamado de “imposto do pecado”. Seu propósito principal não é arrecadar, e sim desestimular o consumo desses produtos.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, que deu origem à EC 132, deixava muito claro que o Seletivo teria um caráter extrafiscal, comentou Vasconcelos. Ou seja, não teria natureza arrecadatória. Porém, a redação foi alterada no Congresso Nacional e essa referência desapareceu.
O Seletivo brasileiro não é exatamente igual ao de outros países. Aqui, será cobrado sobre a extração, algo possivelmente inédito no mundo. É uma complexidade a mais. Vasconcelos questiona se a extração de lítio para produzir baterias para equipamentos médicos pode ser considerada prejudicial à saúde.
Há ainda conflitos no desenho do tributo. Por exemplo: se a cobrança deve ser feita sobre o volume de bebida ou por seu teor alcoólico. Segundo Vasconcelos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a referência seja o teor alcoólico. No Brasil, porém, esse é um ponto que ainda é discutido.
Um integrante do governo afirmou que seria ilógico tentar usar o Seletivo para arrecadar mais. Listou duas razões.
A primeira é que, da arrecadação do Seletivo, 60% pertencerão a Estados e municípios. Assim, um eventual aumento desse imposto beneficiaria mais os entes subnacionais do que a União. Não faria sentido o governo federal enfrentar o desgaste político de propor um aumento do Seletivo, pois ficaria com a menor parcela das receitas.
O segundo está numa das regras de transição. A EC 132 diz que, até 2033, a arrecadação do Seletivo que ultrapassar as receitas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) que deixará de ser cobrado fora da Zona Franca de Manaus será integralmente convertida em redução da CBS. Ou seja, não haveria ganho para a União.
Como informou a repórter Jéssica Sant’Ana, deste jornal, o governo prepara dois projetos de lei complementar para detalhar a reforma tributária: o que tratará do IBS, da CBS e do Seletivo e o que determinará o funcionamento do Comitê Gestor do IBS. Paralelamente, os Estados elaboram dois projetos de lei ordinária, um para regular o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional e outro do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).
Para elaborar as propostas, os técnicos ouviram representantes do setor privado. Um integrante admitiu que não foi possível receber todos os interessados. Porém, mesmo após o envio das propostas ao Congresso, ficará aberto o o canal de diálogo com o Ministério da Fazenda.
O jogo de pressões para obter tratamento tributário privilegiado está só começando. Todo cuidado será pouco para evitar que o esforço de décadas por uma reforma tributária simplificadora se perca. Poucos duvidam dos benefícios dessas mudanças para a economia brasileira, mas há uma difícil travessia à frente.