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Finanças Públicas
Soluções para uma crise fiscal autoimposta
Há diversas distorções em receitas e despesas que podem ser corrigidas com negociação política
24/04/2025
Valor Econômico

Pedro Cavalcanti e Renato Fragelli são professores da EPGE Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV-EPGE)

Ao longo do atual mandato presidencial, a dívida pública saltará de 72% do PIB para 84%. A fim de rolar títulos da dívida, o governo se vê forçado a pagar uma taxa real de juros acima de 7,5% ao ano. Trata-se de uma rota certa para o precipício. Isto num país que não passa por guerra, pandemia, terremoto ou qualquer causa incontrolável por seus governantes. A crise fiscal resulta de uma (in)decisão política. É autoinfligida. Sua solução é factível.
O ajuste fiscal necessário para corrigir o problema é de 3,5% do PIB. Desse total, 1% corresponde ao déficit primário atual – embora o resultado oficial de 2024 tenha sido de 0,1%, a inclusão dos abatimentos legais e exclusão de receitas extra ordinárias elevam o valor a 1% do PIB. Os 2,5% restantes referem-se ao superávit estrutural necessário para reverter a trajetória da dívida pública. Como a receita federal líquida de transferências a Estados e municípios foi de 18,3% do PIB em 2024, o ajuste representa expressivos 19,1% da receita. A boa notícia é que há diversas distorções em receitas e despesas que podem ser corrigidas com negociação política. Alguns exemplos mostram o amplo espaço para atuação.
Gastos tributários: Representavam 2,1% do PIB em 2002, mas atingiram 6,9% em 2024. São isenções casuísticas concedidas a grupos de pressão organizados e bem representados em Brasília. Não há avaliação sistemática de sua efetividade – como o custo tributário por emprego gerado ou o impacto sobre pobreza e desigualdade por ponto percentual do PIB de de isenção. Também não existem metas claras nem prazos definidos. Uma racionalização desses gastos poderia reduzi-los ao patamar de 2002. Em um governo de esquerda, essa deveria ser uma prioridade, já que tais benefícios favorecem grupos privilegiados, não os mais pobres.
INSS: Os critérios de acesso ao benefício e cálculo de seu valor desestimula m a contribuição ao programa. O resultado é uma arrecadação de 5,4% do PIB, muito inferior à despesa, que atinge 7,9% do PIB. A origem da distorção está no fato de o piso dos benefícios ser o salário mínimo (SM), que recebe aumentos reais anualmente, enquanto as contribuições do trabalhador ativo utilizadas no cálculo do benefício futuro, assim como o reajuste das aposentadorias com valor acima do piso, serem corrigidas apenas pela inflação – veja o artigo publicado neste espaço em 27/06/2024. O déficit tende a crescer com a ampliação do MEI, que garante aos seus aderentes os mesmos benefícios dos trabalhadores celetistas, cobrando-lhes, porém, uma contribuição simbólica de apenas 5% do SM. A desvinculação do piso do INSS ao SM e o aumento da alíquota de contribuição do MEI reduziriam o problema.
BPC: O programa paga um SM ao idoso de baixa renda que nunca contribuiu ao INSS, o que desestimula a contribuição ao INSS. O gasto com o BPC encontra-se em 0,9% do PIB, e tende a dobrar até o fim desta década, devido ao crescimento do número beneficiários e ao aumento real do SM. A eliminação da vinculação do piso do INSS ao SM reduziria o problema. Note-se que a solução não envolve suspensão de reajustes reais do SM, uma questão cara à esquerda e a largas parcelas da população.
Regimes especiais de tributação: Permitem que trabalhadores altamente qualificados evitem contribuir aos programas sociais, vendendo seu trabalho por meio de firmas de Lucro Presumido (LP), em vez de se empregarem via CLT. Considerando o IRPF e as contribuições do celetista ao INSS, além dos encargos pagos pelo empregador, a carga tributária sobre o trabalho celetista gira em torno de 40% do valor adicionado pelo trabalho. Quando esse mesmo valor é vendido por meio de firma LP, a soma de IRPF (8%) e ISS, PIS e COFINS (entre 6,15% e 8,65%) atinge no máximo 16,65%. Situação semelhante ocorre no Simples. A grande diferença impulsiona a pejotização, reduzindo a arrecadação do INSS. É necessário alinhar os regimes especiais ao de Lucro Real aplicado a grandes empresas.
Vinculações de gastos a receitas: Após terem sido suspensas pelo Teto de Gastos em 2016, os pisos de gastos com saúde e educação, respectivamente de 15% e 18% da receita líquida federal, foram restabelecidos em 2023. A vinculação implica que 1/3 de qualquer esforço de arrecadação seja automaticamente gasto, dificultando imensamente qualquer ajuste fiscal. É possível assegurar recursos orçamentários a essas duas importantíssimas rubricas sem a ineficiente camisa de força atual.
Nenhuma das sugestões para correção de distorções elencadas acima é politicamente indolor, embora majoritariamente atinjam os mais privilegiados. Mas são o preço a pagar para se evitar a perda da estabilidade macroeconômica conquistada a partir do Plano Real. Está bem estabelecido na literatura que ajustes via cortes de gastos, como a maior parte das políticas aqui propostas, estimulam a atividade econômica, enquanto ajustes via aumento da arrecadação, como perseguido pelo atual governo, são recessivos e acabam mais prejudicando do que favorecendo a economia: reduz-se o déficit fiscal, mas a economia não sai do lugar.