Por Alessandra Saraiva e Lucianne Carneiro
O Brasil está entrando em um inverno demográfico, uma verdadeira “tsunami prateada” com o envelhecimento da população. Ele pode se transformar, no entanto, em uma primavera social e ambiental, diante de algum alívio para o meio ambiente com número menor de pessoas, avaliou o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, professor aposentado da Escola Nacional de Estatísticas (Ence), vinculada ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em entrevista ao Valor, ele admitiu os problemas gerados pelo envelhecimento da população, especialmente para a Previdência. Só que preferiu adotar um tom mais otimista para falar sobre a transição demográfica pela qual o Brasil e o mundo estão passando.
Na sua avaliação, a Previdência brasileira é muito generosa, especialmente com alguns grupos privilegiados, como militares e trabalhadores da Justiça. “Com o envelhecimento rápido da população, a estrutura da Previdência não é viável, vai quebrar”, diz ele, que prevê a necessidade de várias reformas nos próximos anos.
O Brasil deveria olhar, segundo ele, para as experiências de países que já enfrentam a redução da população, como Japão, Portugal, Espanha e Itália, e aproveitar o “bônus prateado”. Uma das iniciativas é aproveitar mais a mão de obra idosa, além de recorrer à imigração.
Em sua análise sobre a evolução demográfica brasileira, Alves comentou que, no Censo 2022, ficou claro o perfil de uma população brasileira mais feminina, mais urbana, mais concentrada nas cidades com população acima de 100 mil habitantes e mais interiorano.
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: O que mudou, em termos de evolução demográfica do país, entre o Censo de 2010 e o de 2022?
José Eustáquio Diniz Alves: A demografia é um transatlântico: não muda de rota de uma hora para outra. As tendências que o Brasil vive hoje já sabíamos desde a década de 90. Uma delas é a do envelhecimento populacional. Pela primeira vez, no Brasil, teremos mais idosos de 60 anos ou mais que jovens de 0 a 14 anos. Isso nunca aconteceu, nem de perto. O século XXI é marcado pelo envelhecimento, no Brasil e no resto do mundo. A outra tendência é a feminização da população. A expectativa de vida da mulher é muito maior que a do homem. No Brasil, é ainda maior que a média internacional. A explicação é a morte por causas externas dos homens jovens, principalmente homicídios e acidentes de trânsito. E sabemos que vai aumentar a urbanização: a população está mais concentrada nas grandes cidades, acima de 100 mil habitantes. Outra [tendência] é que o Brasil está mais interiorano. Antes concentrada no litoral, a população cresce mais no interior, principalmente no Centro-Oeste e nas regiões da Amazônia que não são litorâneas, como Rondônia, Acre e o próprio Amazonas. O Brasil está mais velho, mais feminino, mais urbano.
Valor: E o que dizer dos ajustes no número da população do Censo de 2022?
Alves: Em relação ao número ajustado, teve muita semelhança com o que ocorreu em 2010. No Censo 2010, o IBGE imputou [ajustou posteriormente] cerca de 4 milhões de pessoas. A população era de 187 milhões e passou para 191 milhões. Em 2000, também teve ajustes. O que aconteceu em 2022 é que a quantidade de domicílios imputados foi maior que em 2010 e a diferença em relação às projeções também [O IBGE ajustou a população nacional de 203,1 milhões de habitantes pelo Censo, na data de referência de 31 de julho de 2022, para 210,8 milhões em 1º de julho de 2022]. Isso se explica pela dificuldade do Censo de 2022, com pandemia; governo Jair Bolsonaro; STF [Em 2021, o Supremo Tribunal Federal determinou que o governo Bolsonaro realizasse o Censo]; eleição polarizada [para presidente, em 2018]… Foi feito o Censo possível.
Valor: É possível dizer que o envelhecimento está mais acelerado que o imaginado?
Alves: O envelhecimento é o contrário da queda da fecundidade.
Se a queda da fecundidade é mais rápida, o envelhecimento também é mais rápido. Sabíamos que a frequência [da fecundidade] estava caindo. E por isso o [processo de] envelhecimento aumentou, foi mais rápido.
Valor: O que aceleração significa? Qual o efeito na Previdência?
Alves: É um problema sério. Quando a Previdência foi criada, havia pouquíssima gente aposentada e muita gente trabalhando e contribuindo. O que deveria ter sido feito? Um fundo previdenciário enquanto havia superávit, para cobrir os rombos do futuro. Não foi feito. E, além do mais, a Previdência brasileira é uma das mais benevolentes e generosas do mundo. O brasileiro aposenta muito cedo e tem categorias com salários muito altos. Os militares têm salários muito altos, o pessoal do Judiciário e do Legislativo, também. Além disso, tem muita aposentadoria por doença. E temos notícias de muita fraude no BPC [Benefício de Prestação Continuada], na aposentadoria rural… E tem a questão do trabalho informal, que não contribui [com a Previdência]. Quando esses jovens estiverem velhos, vão pegar um BPC. Se a produtividade no Brasil fosse alta, se o salário fosse alto, seria possível aumentar a contribuição. Mas não é o que ocorre. Esse envelhecimento muito rápido não bate com essa estrutura. Vai quebrar, é inevitável. Antes, 4% da população tinha 60 anos ou mais e vai avançar para 40%. A população de idade ativa, de 15 a 59 anos, que chegou a mais ou menos 70%, deve cair para menos de 50%. Então haverá mais de um dependente para cada pessoa em idade de trabalhar. Nem todo mundo em idade de trabalhar vai trabalhar. E nem todo mundo que que trabalha contribui com a Previdência. É uma conta que não fecha de jeito nenhum.
É possível lidar com população mais velha perfeitamente e tirar proveito”
Valor: Será preciso uma nova reforma da Previdência?
Alves: Quando me perguntam isso, eu digo: claro que precisa e não é uma. Vai precisar de várias reformas, uma só não vai resolver. Na medida que o envelhecimento avançar, terá que fazer várias reformas. Temos que discutir qual é essa reforma. Se eu pudesse opinar, a primeira coisa que iria mexer seria na Previdência dos militares e a segunda, na do Judiciário. Eu mexeria na [aposentadoria] dos mais ricos, dos grandes salários, dos mais privilegiados. Não concordo quando falam “nenhum direito a menos”. Se não cederem, vai quebrar tudo, o país todo vai afundar. A Rússia mexeu, a China mexeu…. Eu chamo o envelhecimento populacional no Brasil de um “tsunami” prateado. Há quem ache ruim classificar assim. Mas quero mostrar que o envelhecimento populacional também tem um lado de oportunidade, pode contribuir para a economia.
Valor: E quais seriam os benefícios da economia mais “prateada”?
Alves: Veja meu caso. Sou idoso, aposentado e tenho mais de 70 anos. No Censo 2022, o IBGE estava com problema de contratar recenseador. Fui recenseador em 1980 e poderia trabalhar meio horário pelo menos. Mas a legislação brasileira não permitia ao IBGE contratar aposentados do instituto. Idosos são uma população com experiência laboral, de vida. Empresas e setor público podem investir na diversidade etária. Se aproveitarem, seria um terceiro bônus demográfico. O Japão, país mais envelhecido do mundo, tem discussão sobre o terceiro bônus demográfico, ou “bônus prateado”.
Valor: O que seria o terceiro bônus demográfico?
Alves: A literatura internacional trata de três bônus demográficos. O que geralmente mencionamos é o primeiro bônus demográfico. É o bônus da estrutura etária, quando a fecundidade cai, e a base da pirâmide [demográfica] é estreita. O primeiro movimento é “engordar” o meio da pirâmide. Isso significa muita gente para trabalhar, com pouca criança e pouco idoso. O meio da pirâmide são as pessoas na população em idade ativa. A economia brasileira cresceu nos últimos 40 anos por causa do primeiro bônus demográfico. A produtividade não cresceu no Brasil, ficou estagnada, mas o PIB [Produto Interno Bruto] cresceu por ter muita gente para trabalhar. Só que o primeiro bônus está acabando. O segundo bônus demográfico é o da produtividade. Nesse processo, as famílias e o Estado começam a investir mais nas crianças. A Coreia do Sul não só aproveitou muito bem o primeiro bônus demográfico, com emprego, educação e saúde para todos, como o segundo bônus demográfico, o da produtividade. A Coreia ficou rica porque aproveitou os dois bônus demográficos, mas a gente não fez isso.
Valor: Podemos ter um terceiro bônus, ao aproveitar a população envelhecida?
Alves: A China já começou a fazer isso. Com escassez de mão de obra jovem, o país investe no mercado da terceira idade. O Japão está na frente dessa discussão. Os japoneses não querem abrir muito a imigração para receber gente do mundo inteiro, como os Estados Unidos, a imigração para receber gente do mundo inteiro, como os Estados Unidos, a imigração é controlada. Então, a solução é aproveitar o potencial dessa geração prateada, o terceiro bônus demográfico.
Valor: A ideia é usar essa população como força de trabalho?
Alves: Sim. Tenho raiva de pessoas que trabalham com envelhecimento e falam que idosos só têm que “fazer dancinha”, “florzinha” ou “desenhar”. Se o idoso está incapacitado, tudo bem. Mas o idoso é muito mais do que isso. Há quem olhe a economia prateada só do ponto de vista do consumo, mas é uma coisa mais ampla, de produção, uma questão social.
Valor: Que países têm experiências positivas nesse sentido?
Alves: Portugal, Espanha, Itália… Na Ásia, Japão, Coreia, Taiwan e agora a China. A falta de mão de obra jovem força esses países a aproveitar melhor o potencial [de trabalho] da terceira idade. E aí, mesmo se [a variação do] PIB estiver ‘zerada’, a renda per capita sobe quando a população diminui.
Valor: Como a interrupção do crescimento da população vai prejudicar nossa economia?
Alves: Quando se tem poucos filhos e um envelhecimento muito grande, é possível ver de duas formas. Pode ser um suicídio populacional, ou seja, a população vai desaparecer. Ou pode ser um inverno demográfico. A primavera é a estação da flor, do desabrochar. E o inverno é a estação quase da morte. Mas temos exemplos de países em que a população está diminuindo há muito tempo e a renda per capita cresce, as condições sociais melhoram… Portugal, Espanha, Itália, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Coreia do Sul e principalmente a China. Na China, a população começou a diminuir em 2022. O país tem 1,42 bilhão de habitantes e vai perder mais de 700 milhões de pessoas até 2100. Isso é mais do que toda a América Latina. E, mesmo com o país mais envelhecido e a população diminuindo, o PIB da China cresce 4%. O inverno demográfico pode se transformar em primavera social e ambiental. O ser humano destrói o meio ambiente. Tudo polui: os alimentos que vai consumir, a casa que vai construir, o carro… Quando reduz a população, os dados mostram melhora de indicadores ambientais: emite menos CO2 e polui menos rios. Esses países que citei melhoraram os indicadores sociais e ambientais. Meu ponto de vista é que a população envelhecendo não é o problema maior. É possível lidar com isso perfeitamente e tirar proveito. Mas se não fizer nada será uma desgraça. Se o Brasil continuar no mesmo ritmo, vai regredir.
Valor: O que se pode fazer?
Alves: O poder público, a iniciativa privada e a sociedade civil podem ajudar. É possível crescer em produtividade, sem necessariamente multiplicar a população. No setor público, por exemplo, há um limite de idade para se aposentar em alguns cargos. Com a perspectiva de escassez de mão de obra jovem, tem que mudar essas regras. Existe um projeto na Câmara para permitir contratação de aposentados com isenção de contribuição para a previdência. Não dá para excluir o idoso para garantir o trabalho do jovem.